quinta-feira, 25 de novembro de 2021

hubble

 do que são feitas as estrelas?


prótons, neutros, quarks e pó de diamante


feitas de desenho animado, amarelas num sábado de manhã


copos de vidro cheios de café frio


buzinas de carros, cerveja, achocolatado e sanduíches de queijo quente


feitas de vento que bate no rosto e amansa o calor de uma noite modorrenta de verão


feitas de luz, feitas de mel


as estrelas tem nome? tem endereço?


quanto custa pra comprar uma estrela?


me pergunto se estrelas tem matrícula em algum registro de imóveis


se donos de estrelas pagam impostos por elas


quando as estrelas nascem a mãe delas tira uma foto?


fazem planos pro futuro? matriculam em uma escolinha de estrelas?


estrelas são feitas de céu azul e pé na grama


não podem ser compradas nem vendidas


e pertencem somente a si mesmas


do que são feitas as estrelas?


as estrelas são feitas de pequenos caquinhos de sonhos.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

sylvia plath, victoria lucas e sigmund freud entram num bar

Todas aquelas debutantes, debochadas, em vestidos rosa-céu. Aquele céu de fim de tarde. Aquele céu que é o prenúncio do fim. Aquele céu que sorri, aquele céu que incandesce.

Exatamente como o olhar de fim de tarde sob um letreiro de neon. 

E entre os old fashioneds e meia dúzia de rusty nails as cervejas amornavam enquanto a praça se tornava um espetáculo brutal de tédio modorrento em um verão de propaganda da Chrysler. As lufadas de vento faziam tudo menos refrescar aquele bafo quente e aquela coloração sépia que nos fazia parecer saídos de um filme do final da década de quarenta, quando as cores não existiam em lugar algum a não ser na imaginação das donas-de-casa ansiosas pelo retorno do marido. Era um pas de deux entre o American Way Of Life e o apocalipse filosófico. 

Porque a esperança era perigosa demais para uma garota como eu. 

Porra, pra quem tinha vivido o fim do mundo todo final de semana, parecia ridículo da minha parte ter medo desse tédio todo. Mas no tédio às vezes surgia um pouquinho daquele ócio criativo, e convenhamos, nem tudo precisa ser um passeio em Veneza, aventureiro e mortal. Às vezes uma caminhada no parque, um livro na sombra de uma árvore, qualquer coisa assim era o suficiente pra fazer a vida ter um pouco de sentido novamente. Nem tudo precisa ser uma confissão liricamente produzida, nem tudo precisa ser uma revolução silenciosa ou uma evolução barulhenta. Às vezes as coisas só precisam ser intangíveis e metódicas como aquela areia branca e nauseante de qualquer porra de ilha na Polinésia meridional. Nem tudo precisa ser sedutor ou intenso como o A Man And His Music. As coisas podem ser eventualmente um Mule Variations, talvez um pouco Life After Sex. Assim, meio daquele jeito. Meio areia branca, meio céu rosado. Nem sempre a vida é um monte de debutantes sorrindo em seus vestidos rosa. Às vezes tudo não passa de uma grande cerveja morna em meio a old fashioneds e rusty nails. É o que tem. É o que somos.

E a esperança, quem sabe, não seja tão perigosa assim. Não para uma garota como eu.

terça-feira, 4 de junho de 2019

umami

 - O meu sonho é comer ostras em Paris - disse ela, apoiando o queixo fino sobre a mão fechada enquanto afetava um ar etéreo. A discussão tinha novamente voltado pra culinária, um território neutro para ambos. Depois de dissertar sobre os males da carne ela admitira que era o que chamavam de "vegetariana não-praticante". Ele tinha uma definição melhor pra isso: mala-sem-alça.

Ele a observava. Moça bonita. Noventa por cento do tempo passava falando sobre a faculdade de artes cênicas, a dieta vegetariana-paleolítica-da-casa-do-caralho e sobre hambúrgueres de abacate.. Os outros dez por cento do tempo passavam transando. E levando em consideração que se viam apenas uma ou duas vezes por mês ele sabia que era muito pouco tempo de transa pra ter que aguentar aquilo. Sorriu enquanto bebericou mais um gole do café, a essa altura já meio gelado.

 - Agora: o seu encontro perfeito, qual seria? - perguntou ela. Sem esperar resposta, continuou falando. - O meu encontro perfeito seria num hotel cinco estrelas, com pétalas de rosa por todo o restaurante. Velas e champanhe. Garçons particulares. E depois uma longa caminhada na praia, sob a luz do luar.

 - E se estiver nublado?

 - Como assim?

 - Digo, sempre existe a possibilidade de estar nublado. Chovendo. O mar pode estar de ressaca. Ou os garçons podem estar de greve.

Ela olhou indignada pra ele. Ela sabia que ele era um filho da puta na maior parte do tempo, mas achava que havia um limite. Mas aparentemente não havia limite nenhum.

 - Bom, mas a discussão é sobre o encontro perfeito, não é? - disse meio desanimada. No encontro perfeito não estaria chovendo porque o encontro perfeito se passaria num mundo perfeito. Um mundo onde não existe greve.

 - Se não existe greve não existe direito trabalhista. Eu nunca tinha te imaginado como liberal, pelo menos não dessa forma - disse ele, esboçando um sorriso entediado.

Ela piscou longamente, como quem conta até dez pra não perder a paciência. A transa era boa, mas será que valia a sanidade mental dela? Enquanto isso ele sorria aquele típico sorriso babaca, sorriso de quem jogou a isca e pescou o peixe. Ele gostava disso: gostava de provocar. Aquela padaria, já meio vazia, era o palco perfeito pra cena que se desenrolava. Ela achava que ele era um pretensioso arrogante do caralho. Ele achava que ela era um poço de futilidades.

E mesmo assim todo domingo de manhã eles transavam.

 - Tá, então me diga você o que seria um encontro perfeito. Segundo os seus maravilhosos critérios, já que você é tão sábio assim. O que você comeria, em que lugar você iria, me ilumine. - disse ela, se inflamando.

Ele sorriu. Ela era fútil na maioria das vezes mas ficava bonitinha quando se enchia de raiva. Sorrir a deixava mais possessa ainda.

 - Eu queria comer um misto-quente. Em um show do Nick Cave. E o show tem que ser feito em um local onde caibam no máximo trinta pessoas.

Ela olhou, incrédula. De um hotel cinco estrelas pra um show minúsculo em um bar decadente. Era assim que ela visualizava. Um ambiente escuro, triste. Meia dúzia de gatos-pingados ouvindo o Skeleton Tree na íntegra. Amargando as próprias frustrações. Porque pra ela o Nick Cave era isso: música pra gente frustrada.

 - Você jura que seria esse o seu encontro perfeito?

 - Bom, depende.

 - Depende do que?

 - De quanto queijo tem no misto-quente. Dizem que existe uma proporção correta, mas pra mim o critério é que tem que ter muito queijo. E seria legal se ele ficasse queimadinho nas bordas, sabe? Meio crocantinho, meio salgado. Aí sim seria perfeito. Se tivesse pouco queijo eu diria que seria meramente ok. Longe de perfeito.

Ela forçou um sorriso, inventou uma desculpa e chamou um taxi. Ele agradeceu a companhia, pegou o metrô e foi pra casa.

Ela preparou um banho quente e um chá. Apagou todos os resquícios dele. Jogou fora fotos, cartas, convites. Não aguentava mais a cretinice.

Ele chegou em casa, ligou o som, colocou uma música e preparou um misto-quente. Comeu ao som de Higgs Boson Blues. "A Magna Opus do velho", como diriam seus amigos. A cada mordida, um sorriso.

Talvez ele fosse mesmo um frustrado. Mas pelo menos o queijo estava queimadinho nas bordas.

Meio crocantinho, meio salgado.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

seu, Lobo.

cada vez que eu calço minhas botas
visto meus jeans e subo na moto
involuntariamente o caminho da tua casa
é o primeiro que me vem à mente
e sempre que eu peço alguma coisa pra beber
eu quase olho pro lado e pergunto se você quer algo
e aí eu lembro que não tem ninguém ali
só uma memória bonita que me deixa triste
eu olho o céu no fim de tarde
e me pergunto se você também tá olhando pro céu
e isso me conforta um pouco
porque de alguma forma você está ali
em algum lugar, de alguma forma
e cada vez que eu escrevo e canto
pego o violão e arranho um acorde
é tudo um emaranhado de memórias e sinais
que começam e terminam nos teus cabelos cor de cobre
e toda vez que eu saio de casa
e respiro fundo depois de terminar meu último cigarro
é sempre na esperança de sentir o teu perfume
nem que fosse uma última vez
antes de voltar pro meu quarto
e me perder mais uma vez em lembranças
eu nunca gostei dessa coisa de destino
sempre tive medo de depender de fatores externos
mas quem sabe paulo coelho tivesse razão
e algumas coisas, muitas poucas coisas
estivessem realmente escritas nas estrelas
que de noite brilhavam
igual seus olhos brilhavam
igual meus olhos brilhavam
quando a gente ainda era feliz
quando a gente ainda era feito de amor.

xadrez verde.

antes de sair
resolvi pegar uma blusa
e por coincidência
peguei a que costumava ficar com ela
botei o pé pra fora de casa
a fumaça dos meus vinte e tantos cigarros
o cheiro das minhas doze ou treze borrifadas de perfume
não foram suficientes pra mascarar
o cheiro de saudades na gola daquela camisa de flanela
eu fechava os olhos, me vinha um arrepio
era cheiro de cama confortável
cheiro de tardes sorridentes
era cheiro de chuva, era cheiro de dor
aquela dor azul de quem estica as pernas depois de horas sentado
aquela dor doce de quem sorri machucado
aquela dor que só sente quem já amou um dia
e de repente minhas mãos pareciam vazias
meus olhos não sabiam aonde pousar
e aquela noite abafada de dezembro se tornou fria
e eu bebi mais do que deveria
mas muito menos do que eu gostaria
e no final da noite eu ainda lembrava o meu nome
o meu endereço e o meu telefone
e até lembrei de tentar esquecer
eu deixei a água escorrer pelo corpo
eu deixei a angústia cair num banho morno
deitei a cabeça no travesseiro em silêncio
fiz minhas preces da noite em silêncio
dormi e sonhei e acordei em silêncio
e o silêncio que me queimava 
agora me ensinava 
um jeito novo de viver

(Lucas Panzarini)

domingo, 3 de dezembro de 2017

crucifixão

no último andar
daquele prédio velho
morava um homem

entre escombros e sujeira, bitucas de cigarro
e arrependimentos
morava um homem

e aquele apartamento era um templo
à sua própria mente

construída, destruída, refeita
sobre as pedras do rio Eufrates

seixos escorregadios que
ao menor sinal de tremor
deslizavam

por entre as colinas de Santa Fé
entre o México e o sétimo círculo do inferno

aquele homem não recebia visitas
não ouvia músicas
não assistia comédias na madrugada de domingo pra segunda-feira

aquele homem vivia
sobrevivia
afogado em suas lamentações
segurando mães e mãos
e chorando no colo do demônio

aquele homem
de rosto vincado e olhar pueril
um eterno adolescente dramático
deixava a barba esconder suas três ou quatro lágrimas

aquele homem tinha
uma garrafa de bourbon em uma mão
e um revólver calibre .357 na outra

clicando impacientemente o isqueiro
acendendo velas e queimando cartas
aquele homem vivia uma vida mansa
marcada pela sua própria apatia

aquele homem não tinha uma moto
aquele homem não tinha um carro
aquele homem tateava os bolsos
à procura de um último cigarro

com as pernas bambas e o coração em festa
regozijava-se, limpando o suor da testa
subindo o monte das oliveiras carregando sua cruz

ele sabia - era uma batalha perdida
ele sabia que morrera em vida
mas vivia como um messias sem nome ou endereço
e escrevia enquanto ainda havia luz

aquele homem não era infeliz
e não era diferente de tantos outros homens
em seus tantos outros apartamentos
fazendo arte pra não enlouquecer

(Lucas Panzarini)

poeira cósmica em três versos

havia um lobo
brincando no mar
correndo na areia
se jogando nas ondas
com os pelos ao vento
e olhos de luar

havia um lobo
brincando no mar
farejando o futuro
rolando na espuma
com as orelhas em pé
e o coração no lugar

havia um lobo
brincando no mar
seguro, tranquilo
banhado por água
por sal e estrelas
senhor do silêncio
com os pelos ao vento
e olhos de luar


(Lucas Panzarini)