segunda-feira, 28 de outubro de 2019

sylvia plath, victoria lucas e sigmund freud entram num bar

Todas aquelas debutantes, debochadas, em vestidos rosa-céu. Aquele céu de fim de tarde. Aquele céu que é o prenúncio do fim. Aquele céu que sorri, aquele céu que incandesce.

Exatamente como o olhar de fim de tarde sob um letreiro de neon. 

E entre os old fashioneds e meia dúzia de rusty nails as cervejas amornavam enquanto a praça se tornava um espetáculo brutal de tédio modorrento em um verão de propaganda da Chrysler. As lufadas de vento faziam tudo menos refrescar aquele bafo quente e aquela coloração sépia que nos fazia parecer saídos de um filme do final da década de quarenta, quando as cores não existiam em lugar algum a não ser na imaginação das donas-de-casa ansiosas pelo retorno do marido. Era um pas de deux entre o American Way Of Life e o apocalipse filosófico. 

Porque a esperança era perigosa demais para uma garota como eu. 

Porra, pra quem tinha vivido o fim do mundo todo final de semana, parecia ridículo da minha parte ter medo desse tédio todo. Mas no tédio às vezes surgia um pouquinho daquele ócio criativo, e convenhamos, nem tudo precisa ser um passeio em Veneza, aventureiro e mortal. Às vezes uma caminhada no parque, um livro na sombra de uma árvore, qualquer coisa assim era o suficiente pra fazer a vida ter um pouco de sentido novamente. Nem tudo precisa ser uma confissão liricamente produzida, nem tudo precisa ser uma revolução silenciosa ou uma evolução barulhenta. Às vezes as coisas só precisam ser intangíveis e metódicas como aquela areia branca e nauseante de qualquer porra de ilha na Polinésia meridional. Nem tudo precisa ser sedutor ou intenso como o A Man And His Music. As coisas podem ser eventualmente um Mule Variations, talvez um pouco Life After Sex. Assim, meio daquele jeito. Meio areia branca, meio céu rosado. Nem sempre a vida é um monte de debutantes sorrindo em seus vestidos rosa. Às vezes tudo não passa de uma grande cerveja morna em meio a old fashioneds e rusty nails. É o que tem. É o que somos.

E a esperança, quem sabe, não seja tão perigosa assim. Não para uma garota como eu.

terça-feira, 4 de junho de 2019

umami

 - O meu sonho é comer ostras em Paris - disse ela, apoiando o queixo fino sobre a mão fechada enquanto afetava um ar etéreo. A discussão tinha novamente voltado pra culinária, um território neutro para ambos. Depois de dissertar sobre os males da carne ela admitira que era o que chamavam de "vegetariana não-praticante". Ele tinha uma definição melhor pra isso: mala-sem-alça.

Ele a observava. Moça bonita. Noventa por cento do tempo passava falando sobre a faculdade de artes cênicas, a dieta vegetariana-paleolítica-da-casa-do-caralho e sobre hambúrgueres de abacate.. Os outros dez por cento do tempo passavam transando. E levando em consideração que se viam apenas uma ou duas vezes por mês ele sabia que era muito pouco tempo de transa pra ter que aguentar aquilo. Sorriu enquanto bebericou mais um gole do café, a essa altura já meio gelado.

 - Agora: o seu encontro perfeito, qual seria? - perguntou ela. Sem esperar resposta, continuou falando. - O meu encontro perfeito seria num hotel cinco estrelas, com pétalas de rosa por todo o restaurante. Velas e champanhe. Garçons particulares. E depois uma longa caminhada na praia, sob a luz do luar.

 - E se estiver nublado?

 - Como assim?

 - Digo, sempre existe a possibilidade de estar nublado. Chovendo. O mar pode estar de ressaca. Ou os garçons podem estar de greve.

Ela olhou indignada pra ele. Ela sabia que ele era um filho da puta na maior parte do tempo, mas achava que havia um limite. Mas aparentemente não havia limite nenhum.

 - Bom, mas a discussão é sobre o encontro perfeito, não é? - disse meio desanimada. No encontro perfeito não estaria chovendo porque o encontro perfeito se passaria num mundo perfeito. Um mundo onde não existe greve.

 - Se não existe greve não existe direito trabalhista. Eu nunca tinha te imaginado como liberal, pelo menos não dessa forma - disse ele, esboçando um sorriso entediado.

Ela piscou longamente, como quem conta até dez pra não perder a paciência. A transa era boa, mas será que valia a sanidade mental dela? Enquanto isso ele sorria aquele típico sorriso babaca, sorriso de quem jogou a isca e pescou o peixe. Ele gostava disso: gostava de provocar. Aquela padaria, já meio vazia, era o palco perfeito pra cena que se desenrolava. Ela achava que ele era um pretensioso arrogante do caralho. Ele achava que ela era um poço de futilidades.

E mesmo assim todo domingo de manhã eles transavam.

 - Tá, então me diga você o que seria um encontro perfeito. Segundo os seus maravilhosos critérios, já que você é tão sábio assim. O que você comeria, em que lugar você iria, me ilumine. - disse ela, se inflamando.

Ele sorriu. Ela era fútil na maioria das vezes mas ficava bonitinha quando se enchia de raiva. Sorrir a deixava mais possessa ainda.

 - Eu queria comer um misto-quente. Em um show do Nick Cave. E o show tem que ser feito em um local onde caibam no máximo trinta pessoas.

Ela olhou, incrédula. De um hotel cinco estrelas pra um show minúsculo em um bar decadente. Era assim que ela visualizava. Um ambiente escuro, triste. Meia dúzia de gatos-pingados ouvindo o Skeleton Tree na íntegra. Amargando as próprias frustrações. Porque pra ela o Nick Cave era isso: música pra gente frustrada.

 - Você jura que seria esse o seu encontro perfeito?

 - Bom, depende.

 - Depende do que?

 - De quanto queijo tem no misto-quente. Dizem que existe uma proporção correta, mas pra mim o critério é que tem que ter muito queijo. E seria legal se ele ficasse queimadinho nas bordas, sabe? Meio crocantinho, meio salgado. Aí sim seria perfeito. Se tivesse pouco queijo eu diria que seria meramente ok. Longe de perfeito.

Ela forçou um sorriso, inventou uma desculpa e chamou um taxi. Ele agradeceu a companhia, pegou o metrô e foi pra casa.

Ela preparou um banho quente e um chá. Apagou todos os resquícios dele. Jogou fora fotos, cartas, convites. Não aguentava mais a cretinice.

Ele chegou em casa, ligou o som, colocou uma música e preparou um misto-quente. Comeu ao som de Higgs Boson Blues. "A Magna Opus do velho", como diriam seus amigos. A cada mordida, um sorriso.

Talvez ele fosse mesmo um frustrado. Mas pelo menos o queijo estava queimadinho nas bordas.

Meio crocantinho, meio salgado.