domingo, 3 de dezembro de 2017

crucifixão

no último andar
daquele prédio velho
morava um homem

entre escombros e sujeira, bitucas de cigarro
e arrependimentos
morava um homem

e aquele apartamento era um templo
à sua própria mente

construída, destruída, refeita
sobre as pedras do rio Eufrates

seixos escorregadios que
ao menor sinal de tremor
deslizavam

por entre as colinas de Santa Fé
entre o México e o sétimo círculo do inferno

aquele homem não recebia visitas
não ouvia músicas
não assistia comédias na madrugada de domingo pra segunda-feira

aquele homem vivia
sobrevivia
afogado em suas lamentações
segurando mães e mãos
e chorando no colo do demônio

aquele homem
de rosto vincado e olhar pueril
um eterno adolescente dramático
deixava a barba esconder suas três ou quatro lágrimas

aquele homem tinha
uma garrafa de bourbon em uma mão
e um revólver calibre .357 na outra

clicando impacientemente o isqueiro
acendendo velas e queimando cartas
aquele homem vivia uma vida mansa
marcada pela sua própria apatia

aquele homem não tinha uma moto
aquele homem não tinha um carro
aquele homem tateava os bolsos
à procura de um último cigarro

com as pernas bambas e o coração em festa
regozijava-se, limpando o suor da testa
subindo o monte das oliveiras carregando sua cruz

ele sabia - era uma batalha perdida
ele sabia que morrera em vida
mas vivia como um messias sem nome ou endereço
e escrevia enquanto ainda havia luz

aquele homem não era infeliz
e não era diferente de tantos outros homens
em seus tantos outros apartamentos
fazendo arte pra não enlouquecer

(Lucas Panzarini)

poeira cósmica em três versos

havia um lobo
brincando no mar
correndo na areia
se jogando nas ondas
com os pelos ao vento
e olhos de luar

havia um lobo
brincando no mar
farejando o futuro
rolando na espuma
com as orelhas em pé
e o coração no lugar

havia um lobo
brincando no mar
seguro, tranquilo
banhado por água
por sal e estrelas
senhor do silêncio
com os pelos ao vento
e olhos de luar


(Lucas Panzarini)

café

num domingo
tedioso
eu entendi
que o amor era aquilo mesmo

o amor eram as minhas duas cadelas
deitadas preguiçosamente no pátio de casa
e quando me viam observando elas
segurando uma caneca de café frio
brilhavam os olhos e abanavam o rabo

um borrão cinzento
a devoção
os olhos marrons, miúdos
se fechando em regozijo
enquanto recebia festinhas naquela barriga peluda

e ela pulava
e me arranhava
sedenta por atenção
quase como quem diz
ei, me note
eu estou aqui
eu gosto de você
por favor goste de mim

e virava de costas pro chão
e rosnava e grunhia e latia
tudo por um afago ligeiro
por meio minuto de atenção
por qualquer palavra simpática
que as lembrasse de que elas não eram meros animais

e foi com um meio sorriso no rosto
e a barba cheirando a café
que eu entendi


eu não era tão diferente delas assim.

(Lucas Panzarini)

sete dias

o telefone tocou
umas duas ou trinta vezes
eu levantava desesperado
daquela poltrona já marcada pelo peso da minha solidão


o telefone tocou
umas duas ou trinta vezes
e nenhuma delas
era você.


eu recebi naquela semana
umas quatro ou cinco cartas
telegramas, escapulários
e propagandas de clínicas de reabilitação


eu recebi naquela semana
uns treze ou quatorze telegramas
queriam saber se eu estava vivo
e na verdade eu não estava não


eram parentes, amigos, colegas de trabalho
com seus filhos e fotos e passeios matinais
eu recebi as melhores notícias
que uma família feliz pode mandar


naquela semana eu não abri nenhuma carta
naquela semana eu tirei o telefone do gancho
naquela semana eu recusei todos os telegramas
e me afundei de volta naquela poltrona
com uma cerveja e meio maço de cigarros amassados
vendo a vida passar.


(Lucas Panzarini)