quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

os fogos lá fora.

Explosões, cores, lampejos e barulho. Ano novo, sempre a mesma coisa. Cães latindo de maneira histérica, risos, bêbados, vômito, gente correndo por um banheiro ao qual nunca chegariam - pobres moitas e cantos escuros. O espetáculo da natureza humana enfrentando seu medo com barulho. É como os caçadores que agitavam as mãos e gritavam ao se deparar com uma presa maior do que podiam combater. Só que no caso as presas somos nós. Presas do tempo. Cada trinta e um de dezembro é um carimbo na nossa testa. Humanos. Falíveis, risíveis, mortais e em-breve-esquecidos humanos. Os foguetes nada mais são do que paliativos pra abafar o sussurro daquilo que não se evita. Velhice. Doença. Pobreza. Abandono. Morte. A música alta, as bebidas, a ceia farta com três tipos de carne e farofa de uva passa. Tudo pra, pelo menos por um dia, fazer a humanidade esquecer a sua própria humanidade. Esquecer que a derrota é iminente. Cada segundo, cada minuto, cada centímetro do ponteiro do relógio é uma contagem regressiva para tudo aquilo que tememos, odiamos, desprezamos. Tique, taque, tique, taque. Segundo, minuto, dia, mês, ano. Tudo segue numa progressão lógica implacável. Tique. Taque.

E os segundos se sincronizam com os fogos lá fora.


(Lucas Panzarini)

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

ela.



Não sabia dizer ao certo o que sentia. Na verdade, se tivesse que dar nome àquela sensação seria algo próximo a “necessidade”. Não era vontade, disso ele tinha certeza. Era uma urgência em vê-la, em visitá-la, em entregar-se de corpo e alma. E havia começado do nada, como uma fagulha que incendeia um monte de palha. Começou como um leve farfalhar de asas de uma borboleta, aquela sensação incômoda no estômago. Mal sabia ele que aquele breve momento se tornaria algo tão intenso e profundo. Passou a tarde inteira no escritório com um único pensamento na cabeça – precisava vê-la. Duas horas, três horas, quatro horas, a cada tiquetaquear do relógio o tempo parecia se arrastar ainda mais. Nunca havia sentido algo parecido, e ia além: duvidava que qualquer ser vivente tivesse sentido algo como aquilo. Quatro horas e quarenta minutos, quatro horas e quarenta e cinco minutos. Os repetidos cafés só faziam piorar. A luz fluorescente do ambiente apático acentuava sua palidez quase que cadavérica. Suava frio, se retorcia incômodo na cadeira. Poderia remediar a situação ali no escritório mesmo, mas sentia que aquilo merecia um momento único, especial. Afrouxou o nó na gravata, tirou o paletó, arregaçou as mangas da camisa, diminuiu a temperatura do ar condicionado. Nada funcionava, nada o impedia de pensar nela como a única coisa no mundo que poderia salvá-lo. Precisava dela como os peixes precisam da água. Não era mais um sentimento qualquer, era algo atrelado à própria sobrevivência. Cinco horas, cinco horas e dez minutos, os relatórios ficaram esquecidos em meio a copos de café e genuína angústia. O desespero começava a tomar conta daquele corpo cansado de tanto lutar. Cinco horas e quarenta e oito minutos e os tiques e taques do ponteiro dos segundos pareciam encantados para contar o tempo da maneira mais lenta possível. Tique, taque, tique, taque e o suor frio escorria pelas têmporas e o cérebro parecia derreter-se aos poucos. A gravata, já de lado, testemunhava a lenta decadência de um homem desesperado. Tique, taque. Seis horas. Mal teve tempo de pegar a maleta e já disparava em direção ao estacionamento. O carro parecia uma gigantesca gaiola de metal que o separava dela. O trânsito parecia imóvel, os sinaleiros demoravam horas para abrir, os motoristas pareciam ter resolvido andar na metade da velocidade normal. Depois de minutos que pareceram dias finalmente embicava na rua de casa. As mãos trêmulas, a visão embaçada, resolveu deixar o carro na rua. Acionou o alarme e correu em direção à porta, as pernas bambas de tanta ansiedade. Nem disse boa noite ao porteiro, apertou convulsivamente o botão do elevador. Começava a se arrepender por ter comprado um apartamento no sétimo andar. Um, dois, três andares e só tinha um pensamento na cabeça: ela. Abriu desesperado a porta do apartamento e nem se deu ao trabalho de trancá-la. Jogou o paletó na mesa da cozinha, a maleta no sofá e, derrapando pelo corredor, despia as calças, restando apenas as meias brancas e a cueca. Finalmente, pensava ele, sorrindo de orelha a orelha. Agora era a hora.

Depois de um dia de desespero e agonia, entrou sorrindo no aposento, acionando o interruptor. A luz branca banhou o cômodo. E de repente o mundo parecia muito mais bonito. E, rindo da sua própria condição deplorável, jurava que nunca mais comeria naquele restaurante de novo. Tirou a cueca, apanhou uma revista qualquer e caminhou triunfante.

Lá estava ela. 

A sua privada.


(Lucas Panzarini)

segunda-feira, 6 de julho de 2015

whisky, cianureto e um punhado de coisas que ninguém sabe.



 - Foi engraçado como você mordeu fácil a isca – disse ele com um copo de whisky na mão e a pistola na outra. – Meia dúzia de juras de amor, duas ou três trepadas e cá estamos. Sua vida vale cinquenta mil e adivinhe: eu quero cinquenta mil.

Ela sorriu.

 - Isso, meu bem, sorria para a morte – disse ele com um meio sorriso. – Existe muita coisa que você não sabe sobre mim – sussurrava enquanto virava de um gole só o whisky restante e apontava a arma para ela.
Ainda sorrindo, ela fitou o copo de whisky, agora vazio, enquanto balançava um pequeno frasco  nos dedos delicados. 

Cianureto.

 - Pelo contrário, meu bem. É você que não sabe muita coisa sobre mim.

O costumeiro baque seco do corpo se chocando contra o chão. Sem sangue, sem sujeira, do jeito que ela sempre gostara.

Vestiu a jaqueta e deixou o chalé.

(Lucas Panzarini)

sexta-feira, 1 de maio de 2015

um breve ode à estrada.

Subiu na moto e partiu. Levou só uma jaqueta de couro, seus óculos escuros e todas as suas mágoas. E a estrada o acolhia como a mãe acolhe o filho. E o vento batia no peito e o sol refletia no asfalto e a estrada tinha cheiro de liberdade. O coração batia forte enquanto as pesadas botas misturavam o leve cheiro de couro à gasolina e óleo de motor. E os pneus contra o chão e o vento contra os cabelos negros e a chuva contra a barba e de repente era só ele e o mundo à sua volta.

E, mesmo longe de casa, se sentia mais em casa do que nunca.


(Lucas Panzarini)

solidão, eternidade e um pouco de batom vermelho.

A solidão? Ah pequena, a solidão é amiga de tempos. Me abraçava quando você ia embora. E me cantava cantigas de ninar quando seus olhos viravam ódio e os meus viravam lágrima. A solidão é uma amante cruel, pequena. É a dor que mais vicia, é a tristeza que mais alegra. A solidão era eu e você, pequena. A solidão é o gosto que ficava na minha boca depois de uns quatro ou vinte cigarros, umas duas ou sete doses, uns quatro ou mil beijos. A solidão é aquela marquinha de batom vermelho, é aquele perfume doce, é a beirada do copo que você deixava mordida enquanto olhava as pessoas dançando. E no fim da noite, quando as luzes se apagam e o garçom começa a varrer o chão, a solidão é a meia dúzia de rosas brancas que jogam no nosso túmulo pra depois virar as costas e ir pra casa.


No final das contas a solidão é a única eternidade que temos.


(Lucas Panzarini)

dies irae, dies ille.

E afinal, por quem os sinos dobram?

Não por mim. Jamais por mim. Os sinos batem, badalam, cantam cantigas e o meu réquiem. Me consomem a alma, me destroem a cabeça, me enchem a mente de gongadas eternas perdidas em lufadas de vento e fumaça e cheiro de gasolina. Dies irae, dies ille. Um dia, dois dias e a loucura e o desespero e o asfalto. O asfalto, sempre o asfalto. A mãe que acolhe os vagabundos, os errantes, os desiludidos e os mortos em vida. E o ódio que consome é o ódio que consola. E a faísca de esperança que morre a cada cigarro aceso na chama que consome o que ainda existe, o que ainda insiste, o que todas as noites pensa em morrer mas não se vai. E no fim o que resta é o medo. Que nada mais é do que o amor pintado de preto. E o coração, vermelho sangue, se parte em dois e se divide e se contorce enquanto busca no cérebro um fundo de razão que já não mais existe porque foi substituído por todo o álcool que eu consumi desde que eu só enxergava os cabelos longos caindo pelas costas e a porta do trem se fechando e então a paisagem morta da estação habitada por todas as minhas dúvidas.

E um sopro dispersa os limites da lareira enquanto Rimbaud se contorce em sua essência por ver a sua obra usada pra fim nenhum por um ninguém que sequer sabe falar francês.


(Lucas Panzarini)

sexta-feira, 27 de março de 2015

deus e o diabo em uma caixa com radiação e veneno.



Como agnóstico que sou seria um tanto hipócrita dizer que a existência ou não de um deus não afeta a minha vida. Mas muito mais pelas questões que essa pergunta inspira do que por quaisquer respostas provenientes de uma noção de divindade absoluta. A crença em uma divindade é perfeitamente aceitável, seja ela qual for, dado o modelo de sociedade que implica quase sempre em procurar respostas em algo que não é propriamente uma resposta, porém uma eterna incógnita. Isso satisfaz a curiosidade inerente ao ser mesmo sem ter que satisfazer, de fato, a curiosidade inerente ao ser. Mas a grande questão não é sobre a existência ou não. Vai além disso. Supondo que realmente haja um deus e que esse deus seja real: não seria a sua amplitude grande demais pra ser concebida dentro do próprio conceito de deus? A existência de uma criatura tão poderosa e universal não ultrapassa os limites da ideia de realidade? Ora, sabendo que a realidade nada mais é do que uma representação do objeto cognoscente por meio da percepção sensorial limitada do ser humano, como dizer que deus é ou não real quando isso depende de sentidos que quem sabe ainda não tenhamos ou simplesmente não estejamos preparados para ter? Será que a magnitude de algo tão onipotente não está simplesmente além do que podemos enxergar e quiçá pensar? É justamente essa a magia da ideia de uma divindade suprema. Você sabe que a existência é tão possível quanto a inexistência e sabe que, mesmo dentro da hipótese que pressupõe a existência de um ser onipotente, ainda assim ele não existiria, haja vista a imensidão do próprio ser e a magnitude e a própria inexplicabilidade do fenômeno divino para seres limitados por cinco sentidos físicos e crus. E finalmente, quando quem sabe haja a possibilidade de perceber a existência de algo divino, percebamos que há de fato ou que não há de fato, tornando a possibilidade de um deus algo mutável por variáveis simples de percepção e consciência.

Deus é um eterno gato de Schrödinger.


(Lucas Panzarini)

quinta-feira, 26 de março de 2015

sobre finais felizes e a eternidade.

somos todos eternos finais felizes de um longo dia ruim

Ah, eternidade
o ciclo imenso de acontecer e não-acontecer que nos cerca
a gota de dúvida que nos permeia
o lapso infindo e contínuo que nos pertence

a faca de dias e meses que nos trespassa
a alma plana que flutua no universo
nas galáxias, planetas e cometas
é a triquetra cristalina que nos transcende

e na lareira as cinzas do passado
na janela os raios luminosos do futuro
e no sofá as cinzas e caixas vazias de cigarro
e pelo chão as garrafas de arrepender-se por tudo

no entanto somos eternas sombras
projetadas na parede da memória
conforme dança a luz, dança o tempo
enquanto apagamos e escrevemos outra história

dois pares de olhos que jamais se desencontram
dois pares de mão que, mesmo distantes, jamais se desentrelaçam
duas existências bailando serenamente num salão em chamas
e nuances de preto e branco que, fugazes, passam

(Lucas Panzarini)

segunda-feira, 16 de março de 2015

problemas.

O homem é um animal engraçado.

Briga no bar, bebe mais do que aguenta, faz cara feia quando se machuca, não solta uma lágrima nem por decreto presidencial. Faz o impossível, move mundos pra não perder a pose. E então, sem motivo, sem explicação, sem razão aparente, ela aparece.

E aí, meu amigo, aí que a coisa complica.

Primeiro aquela troca de olhares, depois uma espiada rápida no decote, um sorriso de canto de boca e acabou-se, o estômago embrulhou, o coração disparou e você se vê pensando no mesmo par de coxas toda noite. E o pior é que nem é só sobre sexo, é sobre encher a cara juntos, trepar a noite inteira e depois observar a cidade pela janela do quarto, sentindo a brisa fresca varrer o cheiro de perfume e fumaça do quarto enquanto vocês riem por nada e discutem as coisas mais aleatórias possíveis.  E você se sente um filho da puta miserável por saber que existem milhões de garotas no mundo e você ainda assim insiste em se deixar encantar somente por aquela. E a sua grande vontade é ir pro bar e encher a cara até qualquer resquício de sentimento desaparecer porque você sabe muito bem que mulheres são sempre um grande problema, ainda mais as que ficam bem de batom vermelho.

Mas no final das contas ela é o problema que você mais gostaria de ter.

E aí você se serve de outra caneca de café, senta-se e sorri, impressionado com a sua própria capacidade de ser tão babaca assim. E de repente você se lembra do mesmo sorriso, do mesmo jeitinho particular de mexer nos cabelos, das mesmas pernas apertadas num jeans que você quer ver amassado no canto do seu quarto.

E o ciclo sempre se repete.
Até você achar o problema que vai ficar com você o resto da sua vida.


(Lucas Panzarini)

quinta-feira, 5 de março de 2015

sobreviver.

As janelas estilhaçadas. O sofá puído, o chão empoeirado. As cinzas lotando toda e qualquer superfície plana presente naquele ambiente. As cortinas semicerradas, a claridade do fim de tarde lutando contra a escuridão de um homem destruído. O litro de whisky quase no fim, a camisa xadrez impregnada de fumaça e blues, a barba de meses, os olhos cansados, as mãos firmes e as enormes botas sujas de barro e óleo. O perfume barato já nem mais disfarçava o odor de boemia que, rançoso, invadia as paredes, a mente, a alma de qualquer ser humano comum. A consciência entorpecida pelo álcool, os olhos injetados, a barba com pontos cinza que escapavam da ponta incandescente do cigarro e voavam graciosamente até o que era o perfeito retrato de um homem moribundo. Todo dia a rotina se repetia. Saía do apartamento escuro, fazia a sua via crucis carregando na garupa da motocicleta o peso de um passado cheio de erros, e de bar em bar bebia e tentava encontrar algum sentido naquilo tudo. Comia alguma coisa em algum lugar qualquer, pagava suas dívidas com notas amassadas tiradas do bolso interno da jaqueta de couro. E subia na moto e ia pra lugar nenhum, até estar cansado o suficiente pra não ter que deitar na cama fria e conviver com os demônios das suas escolhas. E enquanto voltava pra casa sentia aquele cheiro de asfalto molhado. E então acendia o último cigarro da noite, bebia o último gole da garrafa e se deitava.

E assim vivia.
Sobrevivia.

segunda-feira, 2 de março de 2015

breve dissertação sobre um grave caso de psicopatia seguido de amnésia.



Um sono inquieto, profundo, desesperador. Sonhos escuros, confusos, enigmáticos. Foi quase uma benção quando o telefone tocou. Levantou cambaleante, tropeçando nas roupas jogadas pelo quarto fedendo a cigarro. O cheiro forte de álcool impregnava o ambiente, quase como se fizesse parte dele. Tropeçando pelos cômodos, se escorando nas paredes, finalmente chegou à cozinha do pequeno apartamento.  A embriaguez da noite passada dera lugar à uma forte ressaca e uma estranha amnésia. Lembrava de pouquíssimo do que havia acontecido. Lembrava de algumas luzes fortes, gritos, a sensação do metal frio contra a pele quente e um estalar de ossos. E o cheiro de sangue. 

Sorriu.
Havia sido uma noite e tanto.



(Lucas Panzarini)

rotina.



E então descobriu que o mundo acabaria na quarta-feira. Ficou indignado, como assim eu não sabia disso, como ninguém avisa? E pra variar botaram a culpa no governo, nas autoridades, nas entidades e instituições. E aquela noite modorrenta de segunda-feira tornou-se agitada, pessoas chorando, lotando igrejas e templos, caindo em prantos no meio da rua, velas, procissões, um pouquinho de caos ali, outro pouquinho de confusão acolá. Luzes acesas, boatos, ruídos, gritos e mais choro. 

E, de repente, uma calma sobrenatural abateu-se sobre ele. Lá pelas tantas da noite, deitou-se ao lado de sua mulher e dormiu. Acordou ao som do despertador, no dia seguinte. Ele tinha apenas um dia restante. Levantou, lavou o rosto na mesma pia, secou-se com a mesma toalha, calçou o mesmo par de sapatos, vestiu a mesma camisa, a mesma calça, o mesmo cinto. Penteou o cabelo da mesma forma, com o mesmo pente. Colocou café na mesma xícara, mexeu com a mesma colher. Escovou os dentes com a mesma escova. Deu um beijo na esposa e saiu pela mesma porta. Pegou o mesmo ônibus, desceu no mesmo ponto. Entrou no mesmo prédio, bateu cartão no mesmo horário, sentou-se à mesma mesa, fez as mesmas coisas. Saiu no mesmo horário, atravessou a mesma rua, entrou na mesma padaria. E enquanto as pessoas passavam correndo por ele, mastigou o mesmo salgado de sempre como se nada estivesse acontecendo. Atravessou a mesma rua de cabeça baixa, com o mesmo sorriso acanhado. Voltou à mesma mesa, sentou-se da mesma forma e continuou fazendo as mesmas tarefas. Saiu no mesmo horário, caminhou até o ponto de ônibus, e fez algo que nunca fizera antes: comprou uma rosa branca na floricultura próxima. Entrou no mesmo ônibus segurando a flor como quem reza, desceu no mesmo ponto, entrou pela mesma porta pela qual saiu de manhã. Encontrou a mulher sentada no mesmo sofá da mesma sala. Beijou-a, e entregou a rosa. Sorriram como não sorriam desde muito tempo. Jantaram, escovaram os dentes e deitaram-se na mesma cama.

Deitado, ele sorria e só conseguia pensar em uma coisa: aquela rotina nunca mais se repetiria.


(Lucas Panzarini)