sexta-feira, 27 de março de 2015

deus e o diabo em uma caixa com radiação e veneno.



Como agnóstico que sou seria um tanto hipócrita dizer que a existência ou não de um deus não afeta a minha vida. Mas muito mais pelas questões que essa pergunta inspira do que por quaisquer respostas provenientes de uma noção de divindade absoluta. A crença em uma divindade é perfeitamente aceitável, seja ela qual for, dado o modelo de sociedade que implica quase sempre em procurar respostas em algo que não é propriamente uma resposta, porém uma eterna incógnita. Isso satisfaz a curiosidade inerente ao ser mesmo sem ter que satisfazer, de fato, a curiosidade inerente ao ser. Mas a grande questão não é sobre a existência ou não. Vai além disso. Supondo que realmente haja um deus e que esse deus seja real: não seria a sua amplitude grande demais pra ser concebida dentro do próprio conceito de deus? A existência de uma criatura tão poderosa e universal não ultrapassa os limites da ideia de realidade? Ora, sabendo que a realidade nada mais é do que uma representação do objeto cognoscente por meio da percepção sensorial limitada do ser humano, como dizer que deus é ou não real quando isso depende de sentidos que quem sabe ainda não tenhamos ou simplesmente não estejamos preparados para ter? Será que a magnitude de algo tão onipotente não está simplesmente além do que podemos enxergar e quiçá pensar? É justamente essa a magia da ideia de uma divindade suprema. Você sabe que a existência é tão possível quanto a inexistência e sabe que, mesmo dentro da hipótese que pressupõe a existência de um ser onipotente, ainda assim ele não existiria, haja vista a imensidão do próprio ser e a magnitude e a própria inexplicabilidade do fenômeno divino para seres limitados por cinco sentidos físicos e crus. E finalmente, quando quem sabe haja a possibilidade de perceber a existência de algo divino, percebamos que há de fato ou que não há de fato, tornando a possibilidade de um deus algo mutável por variáveis simples de percepção e consciência.

Deus é um eterno gato de Schrödinger.


(Lucas Panzarini)

quinta-feira, 26 de março de 2015

sobre finais felizes e a eternidade.

somos todos eternos finais felizes de um longo dia ruim

Ah, eternidade
o ciclo imenso de acontecer e não-acontecer que nos cerca
a gota de dúvida que nos permeia
o lapso infindo e contínuo que nos pertence

a faca de dias e meses que nos trespassa
a alma plana que flutua no universo
nas galáxias, planetas e cometas
é a triquetra cristalina que nos transcende

e na lareira as cinzas do passado
na janela os raios luminosos do futuro
e no sofá as cinzas e caixas vazias de cigarro
e pelo chão as garrafas de arrepender-se por tudo

no entanto somos eternas sombras
projetadas na parede da memória
conforme dança a luz, dança o tempo
enquanto apagamos e escrevemos outra história

dois pares de olhos que jamais se desencontram
dois pares de mão que, mesmo distantes, jamais se desentrelaçam
duas existências bailando serenamente num salão em chamas
e nuances de preto e branco que, fugazes, passam

(Lucas Panzarini)

segunda-feira, 16 de março de 2015

problemas.

O homem é um animal engraçado.

Briga no bar, bebe mais do que aguenta, faz cara feia quando se machuca, não solta uma lágrima nem por decreto presidencial. Faz o impossível, move mundos pra não perder a pose. E então, sem motivo, sem explicação, sem razão aparente, ela aparece.

E aí, meu amigo, aí que a coisa complica.

Primeiro aquela troca de olhares, depois uma espiada rápida no decote, um sorriso de canto de boca e acabou-se, o estômago embrulhou, o coração disparou e você se vê pensando no mesmo par de coxas toda noite. E o pior é que nem é só sobre sexo, é sobre encher a cara juntos, trepar a noite inteira e depois observar a cidade pela janela do quarto, sentindo a brisa fresca varrer o cheiro de perfume e fumaça do quarto enquanto vocês riem por nada e discutem as coisas mais aleatórias possíveis.  E você se sente um filho da puta miserável por saber que existem milhões de garotas no mundo e você ainda assim insiste em se deixar encantar somente por aquela. E a sua grande vontade é ir pro bar e encher a cara até qualquer resquício de sentimento desaparecer porque você sabe muito bem que mulheres são sempre um grande problema, ainda mais as que ficam bem de batom vermelho.

Mas no final das contas ela é o problema que você mais gostaria de ter.

E aí você se serve de outra caneca de café, senta-se e sorri, impressionado com a sua própria capacidade de ser tão babaca assim. E de repente você se lembra do mesmo sorriso, do mesmo jeitinho particular de mexer nos cabelos, das mesmas pernas apertadas num jeans que você quer ver amassado no canto do seu quarto.

E o ciclo sempre se repete.
Até você achar o problema que vai ficar com você o resto da sua vida.


(Lucas Panzarini)

quinta-feira, 5 de março de 2015

sobreviver.

As janelas estilhaçadas. O sofá puído, o chão empoeirado. As cinzas lotando toda e qualquer superfície plana presente naquele ambiente. As cortinas semicerradas, a claridade do fim de tarde lutando contra a escuridão de um homem destruído. O litro de whisky quase no fim, a camisa xadrez impregnada de fumaça e blues, a barba de meses, os olhos cansados, as mãos firmes e as enormes botas sujas de barro e óleo. O perfume barato já nem mais disfarçava o odor de boemia que, rançoso, invadia as paredes, a mente, a alma de qualquer ser humano comum. A consciência entorpecida pelo álcool, os olhos injetados, a barba com pontos cinza que escapavam da ponta incandescente do cigarro e voavam graciosamente até o que era o perfeito retrato de um homem moribundo. Todo dia a rotina se repetia. Saía do apartamento escuro, fazia a sua via crucis carregando na garupa da motocicleta o peso de um passado cheio de erros, e de bar em bar bebia e tentava encontrar algum sentido naquilo tudo. Comia alguma coisa em algum lugar qualquer, pagava suas dívidas com notas amassadas tiradas do bolso interno da jaqueta de couro. E subia na moto e ia pra lugar nenhum, até estar cansado o suficiente pra não ter que deitar na cama fria e conviver com os demônios das suas escolhas. E enquanto voltava pra casa sentia aquele cheiro de asfalto molhado. E então acendia o último cigarro da noite, bebia o último gole da garrafa e se deitava.

E assim vivia.
Sobrevivia.

segunda-feira, 2 de março de 2015

breve dissertação sobre um grave caso de psicopatia seguido de amnésia.



Um sono inquieto, profundo, desesperador. Sonhos escuros, confusos, enigmáticos. Foi quase uma benção quando o telefone tocou. Levantou cambaleante, tropeçando nas roupas jogadas pelo quarto fedendo a cigarro. O cheiro forte de álcool impregnava o ambiente, quase como se fizesse parte dele. Tropeçando pelos cômodos, se escorando nas paredes, finalmente chegou à cozinha do pequeno apartamento.  A embriaguez da noite passada dera lugar à uma forte ressaca e uma estranha amnésia. Lembrava de pouquíssimo do que havia acontecido. Lembrava de algumas luzes fortes, gritos, a sensação do metal frio contra a pele quente e um estalar de ossos. E o cheiro de sangue. 

Sorriu.
Havia sido uma noite e tanto.



(Lucas Panzarini)

rotina.



E então descobriu que o mundo acabaria na quarta-feira. Ficou indignado, como assim eu não sabia disso, como ninguém avisa? E pra variar botaram a culpa no governo, nas autoridades, nas entidades e instituições. E aquela noite modorrenta de segunda-feira tornou-se agitada, pessoas chorando, lotando igrejas e templos, caindo em prantos no meio da rua, velas, procissões, um pouquinho de caos ali, outro pouquinho de confusão acolá. Luzes acesas, boatos, ruídos, gritos e mais choro. 

E, de repente, uma calma sobrenatural abateu-se sobre ele. Lá pelas tantas da noite, deitou-se ao lado de sua mulher e dormiu. Acordou ao som do despertador, no dia seguinte. Ele tinha apenas um dia restante. Levantou, lavou o rosto na mesma pia, secou-se com a mesma toalha, calçou o mesmo par de sapatos, vestiu a mesma camisa, a mesma calça, o mesmo cinto. Penteou o cabelo da mesma forma, com o mesmo pente. Colocou café na mesma xícara, mexeu com a mesma colher. Escovou os dentes com a mesma escova. Deu um beijo na esposa e saiu pela mesma porta. Pegou o mesmo ônibus, desceu no mesmo ponto. Entrou no mesmo prédio, bateu cartão no mesmo horário, sentou-se à mesma mesa, fez as mesmas coisas. Saiu no mesmo horário, atravessou a mesma rua, entrou na mesma padaria. E enquanto as pessoas passavam correndo por ele, mastigou o mesmo salgado de sempre como se nada estivesse acontecendo. Atravessou a mesma rua de cabeça baixa, com o mesmo sorriso acanhado. Voltou à mesma mesa, sentou-se da mesma forma e continuou fazendo as mesmas tarefas. Saiu no mesmo horário, caminhou até o ponto de ônibus, e fez algo que nunca fizera antes: comprou uma rosa branca na floricultura próxima. Entrou no mesmo ônibus segurando a flor como quem reza, desceu no mesmo ponto, entrou pela mesma porta pela qual saiu de manhã. Encontrou a mulher sentada no mesmo sofá da mesma sala. Beijou-a, e entregou a rosa. Sorriram como não sorriam desde muito tempo. Jantaram, escovaram os dentes e deitaram-se na mesma cama.

Deitado, ele sorria e só conseguia pensar em uma coisa: aquela rotina nunca mais se repetiria.


(Lucas Panzarini)

quem sabe.



Quem sabe Deus seja realmente misericordioso.
Quem sabe ele me deixe morrer durante o sono.
Quem sabe ele faça amanhã ser um dia melhor.

Quem sabe Ele tenha piedade da minha alma.
Quem sabe ele me dê mais um pouco de calma.
Quem sabe eu saiba todos os meus sonhos de cor.

Quem sabe a vida melhore.
Quem sabe eu saiba que o que se planta colhe.
Quem sabe eu desembarace os fios enquanto faço os nós.

Quem sabe Ele me mande alguém que me entenda.
Quem sabe Ele me faça uma emenda.
Ou quem sabe amanhã seja uma manhã tenra de sol.

Quem sabe Deus me faça um afago.
Quem sabe ele me diga pra seguir com cuidado.
Ou quem sabe eu trilhe esse caminho sempre só.

Quem sabe amanhã eu não acorde.
Pegue o violão e arranhe um acorde.
Quem sabe eu apodreça dentro de uma casca de noz.

Quem sabe eu já esteja morto.
Quem sabe nenhum barco atraque nesse porto.
Quem sabe amanhã seja um dia melhor.


(Lucas Panzarini)

sobre suicídio, jesus e isqueiros.




 Pela primeira vez, Lobo sentia medo. Tremia, angustiado, encolhido no canto daquela sala estranha.  Todas as paredes brancas, uma forte luz clara emanando de algum lugar desconhecido. Apenas duas portas, dispostas lado a lado, sem maçaneta ou fechadura aparente. Um zumbido elétrico preenchia o vazio daquele ambiente. Lobo apalpou os bolsos, encontrou uma carteira de cigarros que até então não estava ali. Se deparou com um cantil de aço cheio de whisky. Pelo cheiro, whisky da melhor qualidade. Enfiou a mão no bolso frontal do jeans surrado, encontrou um isqueiro. Seu primeiro isqueiro, presente de uma namorada que se fora há tempos. Assim como todos os outros. Foram embora. Seu pai, sua mãe, até mesmo seus cães. Os únicos que nunca me abandonaram foram os cigarros, a bebida e minha motocicleta, pensou ele. E mais uma vez ele se pegara mergulhando no passado, revivendo suas mágoas, suas desconfianças, seus instintos primais de sobrevivência. Remoendo emoções antigas, fazendo das memórias suas piores inimigas. E sorriu. Um sorriso de canto de boca, um sorriso debochado, quase que um sorriso de vingança. Começou a clicar o isqueiro incessantemente. Clique. Claque. Clique. Claque. 

 - Pelo amor do meu Pai, quer parar com isso?!

Lobo olhou assustado. A porta da direita se abrira, revelando uma figura um tanto quanto peculiar. Um sujeito quase como ele. Grandalhão, barbudo, de regata, jeans e coturnos. Os cabelos engrovinhados caindo por sobre os ombros.

 - Mas quem caralhos é você?
 - Jesus – disse o estranho com um sorrisinho.
 - Jes... como assim Jesus?
 - Assim sendo eu, porra! É incrível como TODO mundo tem que duvidar. Tem uns que acham que eu sou o capeta, e isso que é foda. A gente não pode usar uma roupa mais legal que os caras caem de pau em cima. Acho que esperam sei lá, um ser iluminado, de vestido, cercado de anjinhos e luz e o cacete a quatro. Não porra, não é assim que a banda toca. Aliás, desculpa, as vezes eu fico indignado. Você é o Lobo, né?
 - Ahn, sim, sou eu. E agora me explica o que eu to fazendo aqui, por favor?
 - Cê morreu, cara.
 - Morri?
 - Sim. Morreu. Foi pro saco. Peidou pro capeta. Vestiu o paletó de madeira. Como você preferir.
 - Eu prefiro saber o que aconteceu comigo, caralho!
 - Você se matou. Que eu me lembre você chegou bêbado em casa, botou um cigarro no canto da boca, acendeu, pegou um revólver e atirou contra a própria cabeça. Simples assim.
 - E eu não deveria estar sei lá, num lugar escuro cheio de fogo e enxofre e um cara chifrudo me enrabando?
 - Olha, dá pra providenciar o cara chifrudo pra te enrabar,mas quanto ao resto não. Esqueça o que você ouviu sobre suicídio, inferno e tudo o mais. Como eu disse, as coisas aqui são um pouco diferentes.
 - Caralho, e como funciona então?
 - Se você se matou você tem teus motivos, certo? Então o cara lá de baixo te ouve, o cara lá de cima te ouve e no fim você decide o que faz da tua eternidade.
 - Mas se eu decido por que eles vão me ouvir?
 - Pra você poder decidir corretamente, porra.
 - Ah, entendi. Então basicamente eu tenho o controle sobre o meu destino, mas tenho que passar por uma sabatina celestial e uma sabatina infernal pra eu saber se mereço o destino que acho que mereço?
 - Em resumo sim.
 - Bom, acho que é melhor do que ficar em casa.
 - Sei lá, cara. Sou onipresente.
 - Ah é.

Jesus saiu pela porta. Lobo acendeu outro cigarro.


(Lucas Panzarini)