sábado, 28 de fevereiro de 2015

somos todos cães.

“Somos todos cães
E o bar é a nossa casinha”

Escorraçados
Chutados e feridos
Nos arrastamos por um pedaço de carne
E um afago ligeiro
No nosso lombo sarnento
Com os olhos profundos
E as orelhas caídas
Abanamos o rabo à menor menção de uma voz amistosa
E corremos ganindo com a dor do impacto
De um salto alto perfurando nosso traseiro
Tiros certeiros nos pegam de raspão
Pedras, gritos, pauladas
E mais chutes
Mais um cão jaz abatido
Largado na sarjeta
E quando amanhece o dia
Saímos de nossas tocas, mancos e fedidos
Queimados de cigarro e whisky
Com os olhos embargados
E um meio sorriso no rosto
E quando pensamos encontrar um lar
Com uma família carinhosa
Ração e água
Levamos outro chute
E então lembramos

“Somos todos cães
E o bar é a nossa casinha”




(Lucas Panzarini)

sobre mulheres e o diabo.

E naquela noite modorrenta de dezembro, enquanto eu caminhava por becos tortuosos em busca de algo que nem eu sabia, aparecem em minha frente o Diabo. Não me perguntem como eu sabia que era ele, quem sabe tenha sido o cheiro do enxofre. Ou a maquiagem carregada. Ou até mesmo o bigodinho descolorido com água oxigenada comprada na farmácia mais próxima. Mas ele veio até mim. E não dava pra definir ao certo o que ele era. Era homem, mulher, criança, bode e ovelha, um lobo negro de pelagem brilhante e um peixinho dourado soltando borbulhas sulfúricas enquanto sorria um sorriso amarelo. E quando ele veio até mim tinha o formato de uma atraente mulher. Os lábios vermelhos como o sangue, os olhos maquiados como as gueixas mais caras às quais somente o Imperador tem acesso, o corpo esculpido no mais puro mármore de Carrara, quase que uma Vênus de Milo só que com braços delicados e prontos para fazer cair de amores qualquer homem desavisado. Mas eu sabia, era o Diabo que havia vindo até mim, e eu jamais cairia em tentação. Mesmo sendo o Diabo. Mesmo tendo uma cintura fina e quadris largos. Mesmo tendo longos cabelos negros que lhe destacavam as faces pálidas que por sua vez destacavam os lábios rubros que por sua vez… caralho. Por que diabos (ah, a sutil ironia) o diabo havia vindo até mim? Por que ele estava se aproximando, caminhando com delicadeza, exalando um perfume doce e envolvente? Por que eu? Por que vir até mim? Por que fazer eu esmagar minhas bolas num processo de auto-depreciação, quebrando o pouco amor próprio que ainda me restava só pela oportunidade de sentir aquele perfume mais uma vez? E aí que eu me dei conta, não era esse meu primeiro encontro com o diabo.

Não havia sido ele quem viera até mim.

O que eu procurava nas vielas escuras e becos sujos, agora eu sabia: eu procurava ele.
E por deus, sequer era o diabo. Era uma mulher. A minha mulher. Mas que tinha a forma e os trejeitos do diabo. Porque nenhum outro ser tem o poder de destruir o ego de um homem com apenas um toque de mãos e uma abertura de sutiã. Estava decidido, eu jamais iria por aquelas vielas escuras novamente, seguiria meu rumo, deixe que o passado se vá.

E naquela noite modorrenta de Janeiro lá estava eu, de novo, com o diabo vindo até mim.


(Lucas Panzarini)

um ode à todas elas.

E por cada cigarro fumado, eu te odeio.
E por cada madrugada em claro, eu te odeio.
E por cada fio de esperança cortado, eu te odeio.
E por cada morte que morri ao seu lado, eu te odeio.

E por cada verso, cada acorde
Cada despertar de uma breve morte
E em todos os pensamentos suicidas
E em todo o sal jogado nas minhas feridas

E por cada hora sem dormir
E por cada vez que eu não estive aqui
E por cada sorriso falso afogado em puro fel
E por cada vez que dormi esperando acordar no céu

E em cada nó que foi atado
E em cada canto do quarto incendiado
E em cada centímetro desse altar de loucura ao qual me entrego
E por cada sorriso, que graças a você, eu simplesmente nego

Por cada vez que eu não soube o que fazer
Por cada esquina que eu andava sem saber
Quando, onde e por que iria te encontrar
Na rua, na chuva, no meu velório, num bar

E em cada gesto que deixei falar por mim
E por cada não que na verdade era um sim
E por toda vez que eu não soube o que dizer
Por uma vida vivida em função de te esquecer

É uma dívida de sangue que não se paga
É um fio de luz que se acende e não se apaga
É a chama que acende a brasa do cigarro
É a fossa, é a lama, é a sujeira, é o barro

É um misto complicado de vidas ligadas
É uma bacia cheia de almas recém-lavadas
É um eterno tentar ser o que não se pode ser
Conheci, sorri, amei, sofri
Por fim, por eles, por mim
Por nós
Matei você.



(Lucas Panzarini)

mais nada.

Conto moedas pra comprar um café.
Conto as horas pra sair do trabalho.
Conto causos pra entreter almas perdidas.
Conto algumas cartas antes de misturar o baralho.

Faço bem à quem não quero.
Faço mal à quem não merece.
Faço tudo errado todo santo dia.
Faço certo por linhas tortas tudo aquilo que não me apetece.

Lembro de muita coisa certa.
Lembro de muita coisa errada.
Lembro de tudo e mais um pouco.
E no fim não lembro mais de nada.



(Lucas Panzarini)

testamento.

Não há santo que me salve,
não há igreja que me cure,
não há mão que me socorra,
não há pé que me segure.

Enquanto eu nado aqui sozinho em acordes soltos e perdidos o bloqueio criativo da madrugada aos poucos vai embora, e as palavras começam a fluir de novo. E mais uma vez a minha misantropia, a santa misantropia, a necessidade de odiar. O grande problema é que, talvez, ódio seja justamente o que eu sinta. Apenas odiamos aquilo que tememos, e só temos medo daquilo que não somos capazes de entender. E apenas não entendemos o que nos negamos a conhecer. E pra ser sincero eu não me conheço mais. Não me reconheço mais. A cara no espelho não é mais a minha, o sorriso já não é mais meu, meus ouvidos são dos outros e apenas dos outros. É mais fácil ouvir os outros. Pelo menos abafa um pouco as vozes que gritam, sussurram, me xingam e me demonizam. Abafa a minha própria voz, rouca de cerveja e cigarro, que entoa um blues, que declama poemas, que lê o próprio testamento.

lhes deixo uma guitarra com cordas seminovas
uma jaqueta de couro e uma botina quarenta e seis
dividam o dinheiro entre os pobres
o whisky por favor dividam entre vocês
joguem bitucas de cigarro na minha cova
façam um brinde sobre o meu caixão
coloquem em um cofre e joguem ao mar
minhas lembranças de ódio e auto-comiseração
e quando restar apenas o pó
bebam outro copo por mim
passa o dia, passa a dose
até que todos nos encontremos enfim


(Lucas Panzarini)

sobre beber sozinho no bar.

A grande questão é que a vida é um imenso bar. Existem os boêmios, existem os executivos bem sucedidos tomando cerveja depois do expediente, existem as putas, existem os universitários, existem os cachorros se enfiando pelo meio das pernas dos bêbados e os derrubando, existem os garçons e no fim existe alguém que lucra com tudo isso. Com a derrota, com a vitória, com a tristeza ou com a felicidade. O álcool fala uma linguagem universal, é uma ponte delicada entre um evento e outro. E é claro que você sabe que mais hora ou menos hora aquilo tudo vai ruir. Os jogadores de sinuca vão embora, os apreciadores de whisky pagam a conta, os pobres imploram pra marcar no caderninho pra pagar mês que vem. E quando as luzes se apagam, quando as portas se fecham, quando o bafo quente que sobe do chão começa a ter cheiro de silêncio, é aí que o problema começa. As garotas se foram, os garçons estão dentro do ônibus, o dono do estabelecimento contabiliza os lucros. E toda a sua vida passa diante dos seus olhos. E por fim não adianta mais porque o bar fechou e só te sobraram três cigarros amassados e uma caixa de fósforos pela metade. E você começa a caminhar, banhado pela luz amarela dos postes e vê a rua banhada em ouro e poeira. E então você caminha, caminha, caminha mais um pouco, e os pássaros começam a cantar e, por mais que caia aquela garoa fina e fria, você sabe que é o início de um novo dia. E então você entra em casa, tira a roupa, toma um banho quente, se serve de uma xícara de café, vai até a janela, acende um daqueles últimos três cigarros e sorri. Porque no meio dessa confusão toda você não era nada além do cara sentado no final do balcão, tomando doses sucessivas de conhaque e lembranças. E quando você pediu a última long neck pra aliviar a garganta ardente de gengibre e choro contido, você sente a sua cabeça girando e jura que nunca mais vai beber na vida e que só quer sobreviver à essa ressaca pra virar um novo homem. Só que no fim você fala isso da boca pra fora, porque sabe que não adianta nada, você já morreu faz tempo, afogado em tudo o que te cercou um dia.

E então você se deita e fecha os olhos e reza pra que aquilo tudo seja só um sonho.

E então você acorda e quando menos espera já tá na porta do bar mais uma vez, esperando abrirem pra você pegar a primeira cerveja da noite.


(Lucas Panzarini)

escuridão.

Um cigarro, um gole.
Um cigarro, outro gole.
Outro cigarro, mais um gole.
Um cigarro, uma cirrose, um gole.
Um cigarro, câncer, mais um gole.
Outro cigarro, outro gole.
Um velório, um enterro, a escuridão.

Corações partidos não fazem bem à saúde.


(Lucas Panzarini)

ode ao homem.



homem
este ser transcendental
dotado de bolas e pau
que faz de qualquer sofá o seu lar

homem
este ser abestalhado
que mal vê uma bunda, olha pro lado
e acorda todo dia de pau duro com vontade de mijar

homem
este ser nem tão discreto
que às vezes fica ereto
e com aquela curvada nas costas tenta ao máximo disfarçar

homem
primo distante do macaco
que nasceu pra caçar e coçar o saco
e de vez em quando tomar uma cervejinha no bar

(Lucas Panzarini)

psicólogo.



 - Então, doutor. Nem sei por onde começar.
 - Tente começar como todo mundo: pelo começo.
Fiz um esforço homérico pra rir daquela piada ruim. Não fosse o fato de eu estar pagando cento e tantas pratas pra ficar umas míseras horas ali conversando eu provavelmente já teria mandado aquele maluco de camisa social e sapato mal-lustrado pra puta que pariu. Quem em sã consciência paga um psicólogo quando existem bares? Mas de qualquer forma não fora escolha minha. Minha esposa praticamente me obrigara, então lá estava eu. Naquele misto de consultório e escritório entediantemente bem limpo, arejado, com uma montoeira de livros nas estantes e a eterna certeza de que aquele debilóide ali não lera sequer metade deles. Era patético, realmente patético. Respeitava a profissão como respeitava qualquer outra, meu problema era com o óculos aro de tartaruga, o cabelo irritantemente penteado com gel, a camisa social cor de bosta e aquela cara falsa de quem não trepa faz umas duas semanas. Me servi de um café, acendi um cigarro e olhei pela janela.

 - O problema, doutor, é que eu não sei aonde é o começo. O buraco é muito mais embaixo – disse eu com aquele ânimo digno de segunda feira chuvosa.
 - Bom, comece me falando sobre você. Por que você veio até aqui?
 - Porque minha mulher me obrigou.
 - E por que você não discutiu?
 - Já tentou discutir com uma vaca, doutor? Ela vai mugir, mastigar o capim dela e dar uma bela duma cagada pra qualquer argumento seu. É a mesma lógica.
Ele me olhou com um certo espanto. Eu nunca fiz questão de ter uma família perfeita de comercial de pasta de dente. Eu pouco me fodia praquilo tudo, na verdade. Mas ele, do alto do seu diploma emoldurado, do alto de seus tantos livros e anos na faculdade, ah, ele jamais entenderia. Ele estava tão ocupado me considerando um escravo da bebida e da minha própria angústia que não conseguia enxergar que ele mesmo era um escravo. Escravo da perfeição, da vaidade. Um escravo de si mesmo. E o pior: ele achava que era dono da própria vida, que tinha uma família perfeita, uma filha linda e uma esposa amorosa. Mal sabia ele que a esposa dava pro encanador, a filha matava aula pra fumar maconha enquanto ele passava o dia ganhando dinheiro pra ouvir problemas.
 - Sabe, doutor, o problema é muito maior que tudo isso. Porra, qual a razão disso tudo? Quer dizer, você nasce um bebê pentelho pra caralho, com cara de cu, só sabe cagar e chorar e todo mundo acha você a oitava maravilha do mundo. E aí de repente você vira uma criança escrota e ranhenta que só faz merda o dia inteiro mas é elogiada quando tira nota nove numa prova burra de matemática. E aí você vira um adolescente cheio de espinhas e com um tesão incontrolável, e a única coisa que você quer é um buraco pra enfiar aquela verruga mijadeira que você chama de pau. E aí você acha uma garota qualquer, feia e chata, e resolve que está apaixonado por ela porque ela é a única que não sente nojo quando olha pra sua cara. E vocês transam, e transam bêbados, e transam chapados, e fazem planos de fugir de casa e todo esse diabo. E aí quando você menos espera você leva um pé na bunda. E esse pé na bunda dói, e você começa a beber. E acha garotas na mesma merda que você, e paga cerveja pra elas e trepa até seu pau ficar esfolado. E aí você chega nos seus vinte anos se achando sortudo por não ter um filho ou uma DST qualquer. E você entra pra faculdade. E lá você divide seu tempo entre encher a cara e enrolar os professores pra ganhar nota e passar de ano. E você enche a cara de novo, e trepa de novo. E aí se apaixona mais uma vez, e dessa vez acredita que vai ser diferente. E não é. Você leva outro pé na bunda, e volta pro bar. E começa a perceber que conta as horas assim como conta as moedas, e que o ápice do seu dia é quando você deita na sua cama e acende um cigarro e tem aquele desejo íntimo que o cigarro caia no travesseiro e te mate carbonizado enquanto você dorme. E assim você leva a vida, entre cafés e conhaques, entre amigos e a solidão de uma noite de terça-feira. E então você termina a faculdade, arranja um emprego, vai dividir um apartamento com outros dois neandertais que lavam o saco com o seu sabonete e deixam ele igual a um hamster. E aí você tem contas pra pagar, coisas pra fazer, e por mais cheio que esteja o seu saco você continua ali, como um cordeirinho, porque aquilo é que orgulha os seus pais e familiares. E então você junta grana o suficiente pra comprar um carro usado e dar entrada no seu próprio apartamento em uma área decadente da cidade, e se muda pra lá. E decora o seu lar com todo o bom gosto que o dinheiro lhe permite, e na sexta feira da mesma semana a louça acumulou na pia, o banheiro parece um matadouro de tão fedido e seu quarto tem cheiro de mofo. E assim sua vida segue, semana após semana, dia após dia, minuto após minuto. E você começa a perceber que fica o dia inteiro em um emprego entediante, contando as horas pra chegar em casa, sentar com uma cerveja quente na frente da televisão e aproveitar tudo o que essa magnífica indústria do entretenimento nos proporciona. Isso tudo enquanto come uma porcaria qualquer e engorda igual um porco. E aí chega um dia que você conhece outra garota, e ela parece especial. E vocês namoram, e vocês noivam e você junta três meses de salário pra comprar uma aliança bonita pra ela. E pede ela em casamento. E aí seus pais acham que aquele é o momento mais feliz da vida deles, finalmente o filhão deles vai criar uma família tradicional e vai ser um pai exemplar e ter uma esposa incrível que cozinha macarrão aos domingos. E vocês casam e passam a lua de mel em algum lugar clichê e caro. E você começa a ter uma vida de casado, com uma vagabunda neurótica que quer saber que cheiro de perfume é esse no seu paletó, quem era aquela biscate que foi falar com você e por que você não leva ela pra jantar em algum lugar caro como os vizinhos recém-casados fazem. E você não tem saco de explicar que trabalha o dia inteiro e só quer chegar em casa, comer, ver televisão e dormir. Então você pede desculpas e promete que semana que vem a gente vai. E aí vocês começam a viajar juntos, juntando os dois salários conseguem ir pra algum lugarzinho no exterior. E lá tiram as mesmas fotos que todo mundo já tirou, fazem as mesmas coisas que todo mundo já fez, conversam com as mesmas pessoas que todo mundo já conversou, e ainda acham que estão fazendo um grande negócio, mesmo você sabendo que vai ter que vender o pâncreas pra pagar as parcelas da agência de viagens e o cartão de crédito cheio de faturas de lojas caríssimas que a sua mulher entrou só pra dar uma olhadinha. E aí você vai ter um filho, e vai achar ele a coisa mais linda do mundo, mesmo sendo ele um pedaço de gente que só faz cagar e chorar. E vai criar ele com todo carinho pra no fim das contas ele falar que te odeia e que você é o pior pai do mundo só porque você não comprou um celular novo pra ele. E quando você der por si vai estar velho, decrépito, com dinheiro suficiente pra fechar o puteiro por três dias inteiros mas sem ânimo pra isso porque você sabe que seu pau não vai subir. E aí você vai ter tempo pra realizar todos os seus sonhos mas vai lembrar que tem uma família pra cuidar e além do que a sua artrite não deixa você fazer porra nenhuma. E aí você morre, sua viúva gasta tudo reformando a cozinha e o banheiro, seu filho pega a parte da herança que lhe cabe e compra um carro pra encher de som e a sua vida acabou. E você não fez nada de novo porque a sua vida é exatamente igual à todas as outras, e todo mundo que passou pela sua vida é exatamente igual todo o resto do mundo. E aí é tarde demais pra fazer qualquer coisa porque afinal, seu corpo está num avançado estágio de putrefação sendo comido por diversas espécies de bichos nojentos que você estudava na sexta série nas aulas de biologia. Enfim. Acho que é esse o meu problema.

Ele levantou, parecendo atordoado. Ofereci à ele um cigarro. Ele hesitou. Serviu-se de uma dose do whisky que guardava dentro do armário e deu um longo gole enquanto fitava a janela.

Aceitou o cigarro.

(Lucas Panzarini)

duas bocas.



Não havia sol lá fora. Apenas uma cortina fechada, uma porta trancada e uma cama rangendo. O teto era testemunha de cada gemido, as paredes eram cúmplices do crime mais profano, as janelas respiravam o suor das duas carnes que se faziam uma. Não se sabia aonde começavam as mãos fortes dele e aonde terminava a pele delicada dela. A tez bronzeada se mesclava à palidez ofuscante quase como o leite se mistura ao café. Aquecidos pelo fogo no olhar de cada um. Uma necessidade que urgia, que surgia, que clareava o horizonte. Era amor, era ódio, era vingança e era inocência. A mão fechada por sobre a garganta, a língua sobre o peito arfante, as unhas rasgando a carne, o sangue brotando dos braços musculosos, as curvas perfeitas por debaixo dos lençóis. E em cada estocada um gemido, e em cada gemido uma sensação nova. E quando os dedos se entrelaçavam e os olhos se encontravam as duas respirações ofegavam novamente, como quem se afoga num mar daquilo que não se conhece. E entre tiros no escuro e mordidas os dois corpos se tornavam uma alma. E ainda que fosse só carne, suor e libido não havia o que afastasse a ideia de algo mais. Algo esse que ninguém fazia questão de conhecer, ninguém precisava explicar. Apenas estava lá, como um vigilante silencioso, a zelar pelas sucessivas explosões de êxtase que permeavam os cabelos e acabavam por terminar num jorro cegante de paixão perdida. Um braço para aninhar, outro para pegar um maço novo de cigarros, outra mão para acender o rolo de nicotina, a outra para afastar os cabelos do rosto. Duas bocas, quatro pernas, vinte dedos e uma nuvem de fumaça pairando por sobre o quarto escuro cheirando à whisky. Duas bocas, dois sorrisos e dois olhares. Duas bocas, duas línguas, duas respirações. Duas bocas. Um beijo.

E de repente havia sol lá fora.


(Lucas Panzarini)

em branco.



Uma folha em branco, um lápis daqueles bem vagabundos, um copo lascado com um gole de conhaque e um suspiro. Ela não sabia ao certo o que queria desenhar, mas queria desenhar. Gostava de desenhar. Às vezes a inspiração não vinha, sabe como é. Bloqueio criativo. Mas gostava. Sentava à frente daquela mesa engordurada com marcas de copo e queimaduras de cigarro por toda a sua extensão. Às veze acendia um cigarro e observava lentamente a fumaça subindo em direção ao teto, dando ao cômodo fracamente iluminado um aspecto fantasmagórico. Os olhos castanhos, emoldurados por uma forte maquiagem, varriam o papel vazio devagar, como quem saboreia um prato absurdamente saboroso. E aí ela baixava o lápis e começava a desenhar. Ora curvas, retas e outras abstrações, ora rostos com os olhos felizes e os cabelos embaraçados, ora casinhas de tijolo à vista com uma chaminé encarapitada no alto do telhado. Volta e meia alguns bonequinhos compostos por cinco linhas e um círculo vivendo as situações mais bizarras possíveis. Às vezes nem desenhava, ficava fitando o papel em branco, querendo se teletransportar pra lá, pra um mundo aonde ela tivesse controle sobre a própria vida, um mundo aonde ela pudesse escrever a própria história, um mundo aonde as nuvens sorrissem e a noite fosse fresca e iluminada pela luz amarela dos postes de uma praça aonde as pessoas passeiam de mãos dadas todos os dias. Um mundo aonde ela pudesse fechar os olhos e dormir em paz.

E sem perceber, sorria enquanto olhava prum papel em branco. Às vezes deixava que uma lágrima solitária escorresse pelo c anto do olho, borrando de leve a maquiagem, a qual corria arrumar em frente à penteadeira abarrotada de coisas. Cuidadosamente espalhava a base, escondendo um roxo ou outro que lhe maculava as bochechas. Retocava o batom de modo à camuflar pequenos cortes que porventura aparecessem. As mangas compridas da blusinha decotada tornavam as cicatrizes por todo o braço apenas uma lembrança ruim, e o perfume forte disfarçava o cheiro de álcool e cigarro. E então ela voltava pra sua folha em branco e continuava desenhando, as mãos delicadas segurando com firmeza o lápis preto que contrastava com as unhas compridas e vermelhas. E então ela sorria de novo. 

Os passos pesados no assoalho de madeira do lado de fora do quarto lhe deram o costumeiro arrepio. A porta escancarou, aberta com um empurrão. 

 - Levanta daí, piranha. Cê tem cliente.

Suspirando, ela levantou da cadeira. Amassou o papel carinhosamente rabiscado e jogou no lixo.
Como fizera com todos os seus sonhos, pensou ela.
Sorriu e desceu as escadas.

(Lucas Panzarini)

madrugada.



Era de madrugada que saía de casa e caminhava pela cidade. Gostava de andar sob aquela garoa fina, gostava de sentir os pingos de água no rosto, gostava de sentir a camiseta drapejando com o vento forte que encanava pelas ruas. Gostava principalmente de observar o asfalto molhado refletindo a luz incandescente dos postes. Andava pela cidade sem rumo, observando, sorrindo, vendo o mundo inteiro acordar. Gostava dos barulhos, dos gritos, dos olhares sonolentos e dos passos apressados, gostava do cheiro de café das pequenas lanchonetes ao longo das ruas escorregadias. Gostava de ver seu reflexo nas poças d’água, gostava de ver as árvores, preguiçosas, deixando o orvalho escorrer por sobre as folhas. Gostava de sorrir e cumprimentar os transeuntes, que observavam confusos a gentileza de um completo desconhecido. Gostava de afagar os cães vagabundos parados debaixo da marquise, gostava de falar com os pássaros, gostava de sentar no banco da praça e ver os comerciantes abrindo as lojas, gostava de acompanhar o despertar daquele imenso caos urbano. Gostava do som das buzinas, das sirenes, dos alarmes sendo desligados, dos celulares sendo atendidos, gostava daquela bagunça sinestésica chamada cidade grande. Gostava de tudo aquilo.
Até que um dia escorregou e bateu a cabeça no meio-fio. Morreu na hora.

E, não muito longe dali, duas velhinhas comentavam “morreu o louquinho que andava por aí né? andava por aí debaixo de chuva, falando sozinho e rindo pro vento. que vida triste devia ser a dele né, comadre?” “é, pois é. benza deus que a gente é normal.”

(Lucas Panzarini)