terça-feira, 4 de junho de 2019

umami

 - O meu sonho é comer ostras em Paris - disse ela, apoiando o queixo fino sobre a mão fechada enquanto afetava um ar etéreo. A discussão tinha novamente voltado pra culinária, um território neutro para ambos. Depois de dissertar sobre os males da carne ela admitira que era o que chamavam de "vegetariana não-praticante". Ele tinha uma definição melhor pra isso: mala-sem-alça.

Ele a observava. Moça bonita. Noventa por cento do tempo passava falando sobre a faculdade de artes cênicas, a dieta vegetariana-paleolítica-da-casa-do-caralho e sobre hambúrgueres de abacate.. Os outros dez por cento do tempo passavam transando. E levando em consideração que se viam apenas uma ou duas vezes por mês ele sabia que era muito pouco tempo de transa pra ter que aguentar aquilo. Sorriu enquanto bebericou mais um gole do café, a essa altura já meio gelado.

 - Agora: o seu encontro perfeito, qual seria? - perguntou ela. Sem esperar resposta, continuou falando. - O meu encontro perfeito seria num hotel cinco estrelas, com pétalas de rosa por todo o restaurante. Velas e champanhe. Garçons particulares. E depois uma longa caminhada na praia, sob a luz do luar.

 - E se estiver nublado?

 - Como assim?

 - Digo, sempre existe a possibilidade de estar nublado. Chovendo. O mar pode estar de ressaca. Ou os garçons podem estar de greve.

Ela olhou indignada pra ele. Ela sabia que ele era um filho da puta na maior parte do tempo, mas achava que havia um limite. Mas aparentemente não havia limite nenhum.

 - Bom, mas a discussão é sobre o encontro perfeito, não é? - disse meio desanimada. No encontro perfeito não estaria chovendo porque o encontro perfeito se passaria num mundo perfeito. Um mundo onde não existe greve.

 - Se não existe greve não existe direito trabalhista. Eu nunca tinha te imaginado como liberal, pelo menos não dessa forma - disse ele, esboçando um sorriso entediado.

Ela piscou longamente, como quem conta até dez pra não perder a paciência. A transa era boa, mas será que valia a sanidade mental dela? Enquanto isso ele sorria aquele típico sorriso babaca, sorriso de quem jogou a isca e pescou o peixe. Ele gostava disso: gostava de provocar. Aquela padaria, já meio vazia, era o palco perfeito pra cena que se desenrolava. Ela achava que ele era um pretensioso arrogante do caralho. Ele achava que ela era um poço de futilidades.

E mesmo assim todo domingo de manhã eles transavam.

 - Tá, então me diga você o que seria um encontro perfeito. Segundo os seus maravilhosos critérios, já que você é tão sábio assim. O que você comeria, em que lugar você iria, me ilumine. - disse ela, se inflamando.

Ele sorriu. Ela era fútil na maioria das vezes mas ficava bonitinha quando se enchia de raiva. Sorrir a deixava mais possessa ainda.

 - Eu queria comer um misto-quente. Em um show do Nick Cave. E o show tem que ser feito em um local onde caibam no máximo trinta pessoas.

Ela olhou, incrédula. De um hotel cinco estrelas pra um show minúsculo em um bar decadente. Era assim que ela visualizava. Um ambiente escuro, triste. Meia dúzia de gatos-pingados ouvindo o Skeleton Tree na íntegra. Amargando as próprias frustrações. Porque pra ela o Nick Cave era isso: música pra gente frustrada.

 - Você jura que seria esse o seu encontro perfeito?

 - Bom, depende.

 - Depende do que?

 - De quanto queijo tem no misto-quente. Dizem que existe uma proporção correta, mas pra mim o critério é que tem que ter muito queijo. E seria legal se ele ficasse queimadinho nas bordas, sabe? Meio crocantinho, meio salgado. Aí sim seria perfeito. Se tivesse pouco queijo eu diria que seria meramente ok. Longe de perfeito.

Ela forçou um sorriso, inventou uma desculpa e chamou um taxi. Ele agradeceu a companhia, pegou o metrô e foi pra casa.

Ela preparou um banho quente e um chá. Apagou todos os resquícios dele. Jogou fora fotos, cartas, convites. Não aguentava mais a cretinice.

Ele chegou em casa, ligou o som, colocou uma música e preparou um misto-quente. Comeu ao som de Higgs Boson Blues. "A Magna Opus do velho", como diriam seus amigos. A cada mordida, um sorriso.

Talvez ele fosse mesmo um frustrado. Mas pelo menos o queijo estava queimadinho nas bordas.

Meio crocantinho, meio salgado.

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