sábado, 28 de fevereiro de 2015

testamento.

Não há santo que me salve,
não há igreja que me cure,
não há mão que me socorra,
não há pé que me segure.

Enquanto eu nado aqui sozinho em acordes soltos e perdidos o bloqueio criativo da madrugada aos poucos vai embora, e as palavras começam a fluir de novo. E mais uma vez a minha misantropia, a santa misantropia, a necessidade de odiar. O grande problema é que, talvez, ódio seja justamente o que eu sinta. Apenas odiamos aquilo que tememos, e só temos medo daquilo que não somos capazes de entender. E apenas não entendemos o que nos negamos a conhecer. E pra ser sincero eu não me conheço mais. Não me reconheço mais. A cara no espelho não é mais a minha, o sorriso já não é mais meu, meus ouvidos são dos outros e apenas dos outros. É mais fácil ouvir os outros. Pelo menos abafa um pouco as vozes que gritam, sussurram, me xingam e me demonizam. Abafa a minha própria voz, rouca de cerveja e cigarro, que entoa um blues, que declama poemas, que lê o próprio testamento.

lhes deixo uma guitarra com cordas seminovas
uma jaqueta de couro e uma botina quarenta e seis
dividam o dinheiro entre os pobres
o whisky por favor dividam entre vocês
joguem bitucas de cigarro na minha cova
façam um brinde sobre o meu caixão
coloquem em um cofre e joguem ao mar
minhas lembranças de ódio e auto-comiseração
e quando restar apenas o pó
bebam outro copo por mim
passa o dia, passa a dose
até que todos nos encontremos enfim


(Lucas Panzarini)

Nenhum comentário:

Postar um comentário