sábado, 28 de fevereiro de 2015

amanhã



Todos os dias acordava no mesmo horário. Ia até a janela com uma xícara de café preto e um cigarro. E lá fumava, observando as pessoas, pequeninas e apressadas, passando na comprida avenida. Mais uma xícara de café, outro cigarro. Até a hora do almoço, quando descongelava qualquer porcaria industrializada, esquentava no velho forno microondas e almoçava. E passava as tardes sentado à prancheta, sob a luz amarela do escritório, escrevendo, bebendo café e fumando. Todo dia a mesma rotina, todo dia a mesma janela, todo dia a mesma prancheta. Todo dia a mesma coisa. Só saía do apartamento pra ir ao mercado fazer a compra da semana e pra ir ao banco retirar o dinheiro que o jornal lhe pagava pelos artigos. E assim vivia, sozinho, sem incomodar nem ser incomodado. Achava que aquilo era a vida perfeita.
Mas a vida tem maneiras engraçadas de provar que estamos errados.
Numa manhã cinzenta qualquer, enquanto fumava e bebia seu café na mesma janela de sempre, viu algo que nunca tinha visto antes. Do outro lado da avenida uma mocinha se espreguiçava, olhando pela janela. Viu que era observada e sorriu enquanto fechava as cortinas. Passados alguns minutos as cortinas foram abertas, emoldurando a moça que tomava conta do mercadinho aonde ele comprava seus cigarros. Uma estranha sensação tomou conta dele. Seu estômago embrulhara, ele perdera o ar por alguns instantes, sua vista ficou embaralhada. Acendeu mais um cigarro enquanto buscava mais uma xícara de café. Não, ele não acreditava nessa coisa de amor à primeira vista. Não era amor não, ele tinha certeza absoluta.
Mas a vida tem maneiras engraçadas de provar que estamos errados.
De repente se pegou indo todos os dias no mesmo horário apreciar o ritual de despertar da mocinha do prédio da frente. Espreguiçava, bocejava, sorria, fechava a cortina, abria a cortina e saía. E ele ficava olhando de longe, tomando café na sua xícara lascada e fumando seus cigarros. E todo dia era a mesma coisa. “Um dia eu falo com ela. Abordo ela no mercadinho e pergunto seu nome. Mas amanhã não.” Ele sabia que no fundo era só medo que ele tinha, mas não ligava. Continuava escrevendo, bebendo café e fumando. E reunindo coragem para tomar atitude. Ria de si mesmo, da sua covardia, da sua semelhança com uma criança amedrontada. “Ela é só uma garota, porra! Pergunta o nome dela, vai, você consegue”, dizia à si mesmo. E, ao deitar a cabeça no travesseiro naquela noite, após apagar o último cigarro do dia no cinzeiro que mantinha em cima do criado-mudo, falou em voz alta:
- Amanhã eu falo com ela!
Mas durante a madrugada ele morreu. Seus pulmões não agüentaram, seu coração muito menos. Deixou pra trás meio maço de cigarros, uma xícara lascada e um amor platônico. E no outro dia não havia ninguém no velho apartamento apreciando o despertar da mocinha do prédio da frente. Acorda, espreguiça, boceja, sorri.
E em algum lugar no Universo um homem segurando uma xícara e um cigarro sorri, acompanhando tudo de longe. A vida sempre teve maneiras engraçadas de provar que ele estava errado.
(Lucas Panzarini)

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