sábado, 28 de fevereiro de 2015

duas bocas.



Não havia sol lá fora. Apenas uma cortina fechada, uma porta trancada e uma cama rangendo. O teto era testemunha de cada gemido, as paredes eram cúmplices do crime mais profano, as janelas respiravam o suor das duas carnes que se faziam uma. Não se sabia aonde começavam as mãos fortes dele e aonde terminava a pele delicada dela. A tez bronzeada se mesclava à palidez ofuscante quase como o leite se mistura ao café. Aquecidos pelo fogo no olhar de cada um. Uma necessidade que urgia, que surgia, que clareava o horizonte. Era amor, era ódio, era vingança e era inocência. A mão fechada por sobre a garganta, a língua sobre o peito arfante, as unhas rasgando a carne, o sangue brotando dos braços musculosos, as curvas perfeitas por debaixo dos lençóis. E em cada estocada um gemido, e em cada gemido uma sensação nova. E quando os dedos se entrelaçavam e os olhos se encontravam as duas respirações ofegavam novamente, como quem se afoga num mar daquilo que não se conhece. E entre tiros no escuro e mordidas os dois corpos se tornavam uma alma. E ainda que fosse só carne, suor e libido não havia o que afastasse a ideia de algo mais. Algo esse que ninguém fazia questão de conhecer, ninguém precisava explicar. Apenas estava lá, como um vigilante silencioso, a zelar pelas sucessivas explosões de êxtase que permeavam os cabelos e acabavam por terminar num jorro cegante de paixão perdida. Um braço para aninhar, outro para pegar um maço novo de cigarros, outra mão para acender o rolo de nicotina, a outra para afastar os cabelos do rosto. Duas bocas, quatro pernas, vinte dedos e uma nuvem de fumaça pairando por sobre o quarto escuro cheirando à whisky. Duas bocas, dois sorrisos e dois olhares. Duas bocas, duas línguas, duas respirações. Duas bocas. Um beijo.

E de repente havia sol lá fora.


(Lucas Panzarini)

Nenhum comentário:

Postar um comentário