sábado, 28 de fevereiro de 2015

psicólogo.



 - Então, doutor. Nem sei por onde começar.
 - Tente começar como todo mundo: pelo começo.
Fiz um esforço homérico pra rir daquela piada ruim. Não fosse o fato de eu estar pagando cento e tantas pratas pra ficar umas míseras horas ali conversando eu provavelmente já teria mandado aquele maluco de camisa social e sapato mal-lustrado pra puta que pariu. Quem em sã consciência paga um psicólogo quando existem bares? Mas de qualquer forma não fora escolha minha. Minha esposa praticamente me obrigara, então lá estava eu. Naquele misto de consultório e escritório entediantemente bem limpo, arejado, com uma montoeira de livros nas estantes e a eterna certeza de que aquele debilóide ali não lera sequer metade deles. Era patético, realmente patético. Respeitava a profissão como respeitava qualquer outra, meu problema era com o óculos aro de tartaruga, o cabelo irritantemente penteado com gel, a camisa social cor de bosta e aquela cara falsa de quem não trepa faz umas duas semanas. Me servi de um café, acendi um cigarro e olhei pela janela.

 - O problema, doutor, é que eu não sei aonde é o começo. O buraco é muito mais embaixo – disse eu com aquele ânimo digno de segunda feira chuvosa.
 - Bom, comece me falando sobre você. Por que você veio até aqui?
 - Porque minha mulher me obrigou.
 - E por que você não discutiu?
 - Já tentou discutir com uma vaca, doutor? Ela vai mugir, mastigar o capim dela e dar uma bela duma cagada pra qualquer argumento seu. É a mesma lógica.
Ele me olhou com um certo espanto. Eu nunca fiz questão de ter uma família perfeita de comercial de pasta de dente. Eu pouco me fodia praquilo tudo, na verdade. Mas ele, do alto do seu diploma emoldurado, do alto de seus tantos livros e anos na faculdade, ah, ele jamais entenderia. Ele estava tão ocupado me considerando um escravo da bebida e da minha própria angústia que não conseguia enxergar que ele mesmo era um escravo. Escravo da perfeição, da vaidade. Um escravo de si mesmo. E o pior: ele achava que era dono da própria vida, que tinha uma família perfeita, uma filha linda e uma esposa amorosa. Mal sabia ele que a esposa dava pro encanador, a filha matava aula pra fumar maconha enquanto ele passava o dia ganhando dinheiro pra ouvir problemas.
 - Sabe, doutor, o problema é muito maior que tudo isso. Porra, qual a razão disso tudo? Quer dizer, você nasce um bebê pentelho pra caralho, com cara de cu, só sabe cagar e chorar e todo mundo acha você a oitava maravilha do mundo. E aí de repente você vira uma criança escrota e ranhenta que só faz merda o dia inteiro mas é elogiada quando tira nota nove numa prova burra de matemática. E aí você vira um adolescente cheio de espinhas e com um tesão incontrolável, e a única coisa que você quer é um buraco pra enfiar aquela verruga mijadeira que você chama de pau. E aí você acha uma garota qualquer, feia e chata, e resolve que está apaixonado por ela porque ela é a única que não sente nojo quando olha pra sua cara. E vocês transam, e transam bêbados, e transam chapados, e fazem planos de fugir de casa e todo esse diabo. E aí quando você menos espera você leva um pé na bunda. E esse pé na bunda dói, e você começa a beber. E acha garotas na mesma merda que você, e paga cerveja pra elas e trepa até seu pau ficar esfolado. E aí você chega nos seus vinte anos se achando sortudo por não ter um filho ou uma DST qualquer. E você entra pra faculdade. E lá você divide seu tempo entre encher a cara e enrolar os professores pra ganhar nota e passar de ano. E você enche a cara de novo, e trepa de novo. E aí se apaixona mais uma vez, e dessa vez acredita que vai ser diferente. E não é. Você leva outro pé na bunda, e volta pro bar. E começa a perceber que conta as horas assim como conta as moedas, e que o ápice do seu dia é quando você deita na sua cama e acende um cigarro e tem aquele desejo íntimo que o cigarro caia no travesseiro e te mate carbonizado enquanto você dorme. E assim você leva a vida, entre cafés e conhaques, entre amigos e a solidão de uma noite de terça-feira. E então você termina a faculdade, arranja um emprego, vai dividir um apartamento com outros dois neandertais que lavam o saco com o seu sabonete e deixam ele igual a um hamster. E aí você tem contas pra pagar, coisas pra fazer, e por mais cheio que esteja o seu saco você continua ali, como um cordeirinho, porque aquilo é que orgulha os seus pais e familiares. E então você junta grana o suficiente pra comprar um carro usado e dar entrada no seu próprio apartamento em uma área decadente da cidade, e se muda pra lá. E decora o seu lar com todo o bom gosto que o dinheiro lhe permite, e na sexta feira da mesma semana a louça acumulou na pia, o banheiro parece um matadouro de tão fedido e seu quarto tem cheiro de mofo. E assim sua vida segue, semana após semana, dia após dia, minuto após minuto. E você começa a perceber que fica o dia inteiro em um emprego entediante, contando as horas pra chegar em casa, sentar com uma cerveja quente na frente da televisão e aproveitar tudo o que essa magnífica indústria do entretenimento nos proporciona. Isso tudo enquanto come uma porcaria qualquer e engorda igual um porco. E aí chega um dia que você conhece outra garota, e ela parece especial. E vocês namoram, e vocês noivam e você junta três meses de salário pra comprar uma aliança bonita pra ela. E pede ela em casamento. E aí seus pais acham que aquele é o momento mais feliz da vida deles, finalmente o filhão deles vai criar uma família tradicional e vai ser um pai exemplar e ter uma esposa incrível que cozinha macarrão aos domingos. E vocês casam e passam a lua de mel em algum lugar clichê e caro. E você começa a ter uma vida de casado, com uma vagabunda neurótica que quer saber que cheiro de perfume é esse no seu paletó, quem era aquela biscate que foi falar com você e por que você não leva ela pra jantar em algum lugar caro como os vizinhos recém-casados fazem. E você não tem saco de explicar que trabalha o dia inteiro e só quer chegar em casa, comer, ver televisão e dormir. Então você pede desculpas e promete que semana que vem a gente vai. E aí vocês começam a viajar juntos, juntando os dois salários conseguem ir pra algum lugarzinho no exterior. E lá tiram as mesmas fotos que todo mundo já tirou, fazem as mesmas coisas que todo mundo já fez, conversam com as mesmas pessoas que todo mundo já conversou, e ainda acham que estão fazendo um grande negócio, mesmo você sabendo que vai ter que vender o pâncreas pra pagar as parcelas da agência de viagens e o cartão de crédito cheio de faturas de lojas caríssimas que a sua mulher entrou só pra dar uma olhadinha. E aí você vai ter um filho, e vai achar ele a coisa mais linda do mundo, mesmo sendo ele um pedaço de gente que só faz cagar e chorar. E vai criar ele com todo carinho pra no fim das contas ele falar que te odeia e que você é o pior pai do mundo só porque você não comprou um celular novo pra ele. E quando você der por si vai estar velho, decrépito, com dinheiro suficiente pra fechar o puteiro por três dias inteiros mas sem ânimo pra isso porque você sabe que seu pau não vai subir. E aí você vai ter tempo pra realizar todos os seus sonhos mas vai lembrar que tem uma família pra cuidar e além do que a sua artrite não deixa você fazer porra nenhuma. E aí você morre, sua viúva gasta tudo reformando a cozinha e o banheiro, seu filho pega a parte da herança que lhe cabe e compra um carro pra encher de som e a sua vida acabou. E você não fez nada de novo porque a sua vida é exatamente igual à todas as outras, e todo mundo que passou pela sua vida é exatamente igual todo o resto do mundo. E aí é tarde demais pra fazer qualquer coisa porque afinal, seu corpo está num avançado estágio de putrefação sendo comido por diversas espécies de bichos nojentos que você estudava na sexta série nas aulas de biologia. Enfim. Acho que é esse o meu problema.

Ele levantou, parecendo atordoado. Ofereci à ele um cigarro. Ele hesitou. Serviu-se de uma dose do whisky que guardava dentro do armário e deu um longo gole enquanto fitava a janela.

Aceitou o cigarro.

(Lucas Panzarini)

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