sábado, 28 de fevereiro de 2015

em branco.



Uma folha em branco, um lápis daqueles bem vagabundos, um copo lascado com um gole de conhaque e um suspiro. Ela não sabia ao certo o que queria desenhar, mas queria desenhar. Gostava de desenhar. Às vezes a inspiração não vinha, sabe como é. Bloqueio criativo. Mas gostava. Sentava à frente daquela mesa engordurada com marcas de copo e queimaduras de cigarro por toda a sua extensão. Às veze acendia um cigarro e observava lentamente a fumaça subindo em direção ao teto, dando ao cômodo fracamente iluminado um aspecto fantasmagórico. Os olhos castanhos, emoldurados por uma forte maquiagem, varriam o papel vazio devagar, como quem saboreia um prato absurdamente saboroso. E aí ela baixava o lápis e começava a desenhar. Ora curvas, retas e outras abstrações, ora rostos com os olhos felizes e os cabelos embaraçados, ora casinhas de tijolo à vista com uma chaminé encarapitada no alto do telhado. Volta e meia alguns bonequinhos compostos por cinco linhas e um círculo vivendo as situações mais bizarras possíveis. Às vezes nem desenhava, ficava fitando o papel em branco, querendo se teletransportar pra lá, pra um mundo aonde ela tivesse controle sobre a própria vida, um mundo aonde ela pudesse escrever a própria história, um mundo aonde as nuvens sorrissem e a noite fosse fresca e iluminada pela luz amarela dos postes de uma praça aonde as pessoas passeiam de mãos dadas todos os dias. Um mundo aonde ela pudesse fechar os olhos e dormir em paz.

E sem perceber, sorria enquanto olhava prum papel em branco. Às vezes deixava que uma lágrima solitária escorresse pelo c anto do olho, borrando de leve a maquiagem, a qual corria arrumar em frente à penteadeira abarrotada de coisas. Cuidadosamente espalhava a base, escondendo um roxo ou outro que lhe maculava as bochechas. Retocava o batom de modo à camuflar pequenos cortes que porventura aparecessem. As mangas compridas da blusinha decotada tornavam as cicatrizes por todo o braço apenas uma lembrança ruim, e o perfume forte disfarçava o cheiro de álcool e cigarro. E então ela voltava pra sua folha em branco e continuava desenhando, as mãos delicadas segurando com firmeza o lápis preto que contrastava com as unhas compridas e vermelhas. E então ela sorria de novo. 

Os passos pesados no assoalho de madeira do lado de fora do quarto lhe deram o costumeiro arrepio. A porta escancarou, aberta com um empurrão. 

 - Levanta daí, piranha. Cê tem cliente.

Suspirando, ela levantou da cadeira. Amassou o papel carinhosamente rabiscado e jogou no lixo.
Como fizera com todos os seus sonhos, pensou ela.
Sorriu e desceu as escadas.

(Lucas Panzarini)

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