domingo, 1 de março de 2015

em frangalhos.



O ronco da moto morreu quase enquanto as pesadas botas marcaram o chão poeirento. A jaqueta de couro fedendo à cigarro drapejou enquanto os dedos grossos fechavam o zíper, procurando proteger o peito ferido do frio. A brasa do cigarro era um ponto solitário na noite escura, e os passos, outrora firmes, agora eram vacilantes, embriagados de solidão e tristeza. Mais uma vez na sarjeta, mais uma vez voltando pro lugar de onde nunca deveria ter saído. Mais uma vez de volta à si mesmo, encontrando numa garrafa de cerveja e num maço de cigarros a compreensão. A estação de trem, testemunha de todas as suas lágrimas, era hoje sua cúmplice no crime de amar.  Lobo, mais uma vez, estava confuso. Seria cômico, se não fosse trágico. Um homenzarrão daquele tamanho coçando a cabeça como uma criança que enfrenta seus primeiros problemas de matemática. Mas era exatamente assim que se sentia, indefeso, atordoado. Entorpecido. Não era novidade pra ele, claro. Já passara por coisa pior. Mas ainda assim era estranho. E ao mesmo tempo era lógico. E surreal. Resolveu acender mais um cigarro porque nada daquilo estava fazendo sentido. Dessa vez ele não estava embriagado, não estava chorando, não estava morrendo por dentro. Simplesmente estava. A punhalada veio de surpresa, a ferida nas costas ia demorar pra cicatrizar. A sensação da lâmina entrando na carne, o metal se fundindo ao sangue, o brilho do gume afiado, tudo isso fora repentino demais. Mas ao mesmo tempo fora engraçado. A mão que tanto lhe afagara, a mão que se estendera procurando ajuda, a mão que foi abraçada de pronto quando o buraco a engolia, essa mesma mão segurou a faca que quase matou Lobo. Mas entre o fazer e o não fazer existe o quase, e o quase o salvara. Assim como ele salvara ela. Mas não vinha ao caso, não importava mais. Ninguém nunca se importa com nada, muito menos com o que recebe. A mão que afaga é a mesma que apedreja, já disse sabiamente um poeta. A mão que se prostra procurando apoio é a mesma que empunha a lâmina que desfere o golpe de misericórdia. Ele lembraria, claro, com ternura, de tudo de bom que havia acontecido. Mas no final das contas sempre restaria o amargor, o rancor, o ódio comedido que o fazia ser quem era. Que o fazia ser cauteloso, arisco, até mesmo, por que não, frio. Porque no fundo no fundo, por trás de todas as risadas, de todas as piadas e de todo o ombro amigo e porto seguro que ele era, havia alguém cansado. Ferido. Com medo. Medo do próximo golpe, medo da solidão, medo de tudo isso. Por trás da coragem havia medo. E por trás do medo havia vergonha. Vergonha por sentir medo. E por trás da vergonha havia um coração que, fragilizado, pulsava lentamente, no compasso das tragadas no cigarro de filtro amarelo.

Sentiu o couro entre as pernas, sentiu a vibração do motor, sentiu o ronco da motocicleta. Sentiu o vento nos cabelos e as lágrimas no canto do olho. Sentiu os olhos ofuscados pela claridade do farol do caminhão que vinha veloz. Sentiu a mão esquerda puxar o guidão em direção à contramão. Sentiu os ouvidos vibrando com a buzina. Sentiu o impacto, os músculos se fundindo ao metal.

Sentiu a cabeça leve, a consciência tranquila, a alma descansada.

Fechou os olhos já fechados.

Não sentiu mais nada.


(Lucas Panzarini)

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