O ronco da moto morreu quase enquanto as pesadas botas
marcaram o chão poeirento. A jaqueta de couro fedendo à cigarro drapejou
enquanto os dedos grossos fechavam o zíper, procurando proteger o peito ferido
do frio. A brasa do cigarro era um ponto solitário na noite escura, e os
passos, outrora firmes, agora eram vacilantes, embriagados de solidão e
tristeza. Mais uma vez na sarjeta, mais uma vez voltando pro lugar de onde
nunca deveria ter saído. Mais uma vez de volta à si mesmo, encontrando numa
garrafa de cerveja e num maço de cigarros a compreensão. A estação de trem,
testemunha de todas as suas lágrimas, era hoje sua cúmplice no crime de
amar. Lobo, mais uma vez, estava
confuso. Seria cômico, se não fosse trágico. Um homenzarrão daquele tamanho
coçando a cabeça como uma criança que enfrenta seus primeiros problemas de
matemática. Mas era exatamente assim que se sentia, indefeso, atordoado.
Entorpecido. Não era novidade pra ele, claro. Já passara por coisa pior. Mas
ainda assim era estranho. E ao mesmo tempo era lógico. E surreal. Resolveu
acender mais um cigarro porque nada daquilo estava fazendo sentido. Dessa vez
ele não estava embriagado, não estava chorando, não estava morrendo por dentro.
Simplesmente estava. A punhalada veio de surpresa, a ferida nas costas ia
demorar pra cicatrizar. A sensação da lâmina entrando na carne, o metal se
fundindo ao sangue, o brilho do gume afiado, tudo isso fora repentino demais.
Mas ao mesmo tempo fora engraçado. A mão que tanto lhe afagara, a mão que se
estendera procurando ajuda, a mão que foi abraçada de pronto quando o buraco a
engolia, essa mesma mão segurou a faca que quase matou Lobo. Mas entre o fazer
e o não fazer existe o quase, e o quase o salvara. Assim como ele salvara ela.
Mas não vinha ao caso, não importava mais. Ninguém nunca se importa com nada,
muito menos com o que recebe. A mão que afaga é a mesma que apedreja, já disse
sabiamente um poeta. A mão que se prostra procurando apoio é a mesma que
empunha a lâmina que desfere o golpe de misericórdia. Ele lembraria, claro, com
ternura, de tudo de bom que havia acontecido. Mas no final das contas sempre
restaria o amargor, o rancor, o ódio comedido que o fazia ser quem era. Que o
fazia ser cauteloso, arisco, até mesmo, por que não, frio. Porque no fundo no
fundo, por trás de todas as risadas, de todas as piadas e de todo o ombro amigo
e porto seguro que ele era, havia alguém cansado. Ferido. Com medo. Medo do
próximo golpe, medo da solidão, medo de tudo isso. Por trás da coragem havia
medo. E por trás do medo havia vergonha. Vergonha por sentir medo. E por trás
da vergonha havia um coração que, fragilizado, pulsava lentamente, no compasso
das tragadas no cigarro de filtro amarelo.
Sentiu o couro entre as pernas, sentiu a vibração do motor,
sentiu o ronco da motocicleta. Sentiu o vento nos cabelos e as lágrimas no
canto do olho. Sentiu os olhos ofuscados pela claridade do farol do caminhão
que vinha veloz. Sentiu a mão esquerda puxar o guidão em direção à contramão.
Sentiu os ouvidos vibrando com a buzina. Sentiu o impacto, os músculos se
fundindo ao metal.
Sentiu a cabeça leve, a consciência tranquila, a alma
descansada.
Fechou os olhos já fechados.
Não sentiu mais nada.
(Lucas Panzarini)
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