- Pega mais um pedaço
de bolo, fia. Tá quentinho.
A garota olhou ao seu redor. Não fazia ideia de como fora
parar ali. Apenas sabia que existia, que podia sentir, ouvir, ver, cheirar.
Sentia o cheiro adocicado do quitute, o perfume fresco de sua tia-avó, o calor
e o silêncio modorrento fora da casa de dois andares e carpete verde-musgo. A
xícara de chá à sua frente desprendia um vapor suave que se espiralava por
entre os cabelos lisos que emolduravam a tez pálida e os olhos d’um castanho
tão escuro que pareciam imensidões infinitas. Meio sonolenta, meio trêmula, a
garota estendeu a mão e, com uma faca de serra, cortou mais um pedaço do bolo
de fubá que ainda fumegava. A casa estava vazia, a não ser pelas duas mulheres
e um cachorro labrador que dormia à um canto, como se nada no mundo pudesse
interromper o seu sono. Mastigando lentamente o bolo e ocasionalmente tirando
farelo ou outro do canto dos lábios finos, ela olhou ao redor. Não conseguia
ver além da janela, apenas conseguia vislumbrar algumas sombras indistintas que
se distorciam nas pesadas cortinas vermelho-carmim. Resolveu, por hora, não se
preocupar em ver nada além do que estava à sua frente. Continuou mastigando o
bolo enquanto sua tia-avó sorria maternalmente para ela.
- Quanto tempo hein fia, pensei que nunca mais fosse me visitá.
O sotaque caipiresco e os trejeitos simples de uma mulher
forjada no campo sempre faziam a garota rir, mas dessa vez ela não achou graça.
Não achou nada, na verdade. Parecia despida de emoções, e aquilo era estranho.
Sempre fora transparente, emotiva, dada à relacionamentos profundos e
demonstrações públicas de afeto. Cortou o assunto.
- Como é o nome do
cachorro?
Sua voz saiu mais rouca e grave do que esperava. Parecia uma
daquelas cantoras de blues, aquelas negras bonitas que via nos romances noir que o pai tanto gostava de
assistir.
- Baltazar. Ele vive
aqui em casa, parece que gosta de dormir naquele cantinho.
Baltazar. Que nome
engraçado, pensou ela. Transmitia segurança. E um quê de década de quarenta
também, sabe-se lá o motivo. Nenhuma das duas quebrou o silêncio que se seguiu.
Até que a garota resolveu perguntar.
- Por que eu tô aqui,
tia?
A senhora já não pareceu tão simpática. Arredia, sorriu
amarelo e acendeu um cigarro, daqueles que fedem horrores porque não custam
mais do que duas pratas o maço. Bebericou seu chá, à essa altura morno. Olhou
para ela e não disse nada. E como a garota não era de insistir em conversa
morta, levantou e foi mexer com o cachorro que respirava profundamente,
soltando roncos ocasionais que a faziam sorrir. Afagou a cabeça dele, cutucou a
barriga, fez-lhe festas nas costas cor de chocolate e nada. O cachorro
simplesmente não se mexia. Não fosse a respiração lenta e compassada que fazia
os fios soltos do carpete se mexerem, qualquer um teria dito que o cachorro
estava morto. Mas ele estava vivo, só não parecia querer muita conversa. A
mulher se levantou da mesa e se juntou à garota. Agachou-se e disse, quase que
num sussurro:
- É normal. No começo
você não lembra de muita coisa, aí chegam as três da manhã e você vê tudo como
num filme. E aí de repente você se acostuma e toma chá todas as tardes, mesmo
que ele a cada dia perca um pouco do sabor, até aquilo que há na xícara não
passar de um líquido âmbar com gosto de verniz. E o bolo de fubá não parece ter
a mesma textura e a mesma cor daquele que você fez alguns dias atrás. E até
mesmo os cigarros já não te acalmam mais, e nem o café te mantém acordada. E
não há sonífero que te faça dormir porque o barulho lá fora é insuportável. E
por fim você começa a se arrepender e aí se tiver sorte a sua consciência fica
entorpecida demais pra você conseguir pensar em qualquer coisa que não um
provável segundo suicídio.
Três badaladas do relógio. A depressão. O álcool. O pó
branco alinhado em caprichosas carreiras por cima de um livro do Bukowski. Os
remédios tarja preta, o whisky e aquele zumbido insuportável. As sirenes. Os
gritos. As lágrimas. A luz branca do hospital. A voz desanimada do médico. E
por fim... o silêncio.
A garota olhou assustada para a mulher, que compreensiva,
lhe estendeu as mãos, agora pútridas com unhas que mais pareciam garras. O
sorriso era um esgar de dentes afiados e amarelos, e os olhos eram duas órbitas
negras.
E enquanto isso, lá fora, uma figura alta, de cavanhaque,
uma bengala com um pequeno tridente na ponta, um rabo e um modesto par de
chifres assoviava, tranquilo, pelas ruas, enquanto entoava:
- Baltazar? Cadê
você, garotão?
A cabeça do labrador se dividiu em três, e com um rosnado e
um borrão de dentes e escuridão, o cachorro desceu a escada, abanando o rabo
contente.
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