domingo, 1 de março de 2015

em memória de baltazar.



 - Pega mais um pedaço de bolo, fia. Tá quentinho.

A garota olhou ao seu redor. Não fazia ideia de como fora parar ali. Apenas sabia que existia, que podia sentir, ouvir, ver, cheirar. Sentia o cheiro adocicado do quitute, o perfume fresco de sua tia-avó, o calor e o silêncio modorrento fora da casa de dois andares e carpete verde-musgo. A xícara de chá à sua frente desprendia um vapor suave que se espiralava por entre os cabelos lisos que emolduravam a tez pálida e os olhos d’um castanho tão escuro que pareciam imensidões infinitas. Meio sonolenta, meio trêmula, a garota estendeu a mão e, com uma faca de serra, cortou mais um pedaço do bolo de fubá que ainda fumegava. A casa estava vazia, a não ser pelas duas mulheres e um cachorro labrador que dormia à um canto, como se nada no mundo pudesse interromper o seu sono. Mastigando lentamente o bolo e ocasionalmente tirando farelo ou outro do canto dos lábios finos, ela olhou ao redor. Não conseguia ver além da janela, apenas conseguia vislumbrar algumas sombras indistintas que se distorciam nas pesadas cortinas vermelho-carmim. Resolveu, por hora, não se preocupar em ver nada além do que estava à sua frente. Continuou mastigando o bolo enquanto sua tia-avó sorria maternalmente para ela.

 - Quanto tempo hein fia, pensei que nunca mais fosse me visitá.

O sotaque caipiresco e os trejeitos simples de uma mulher forjada no campo sempre faziam a garota rir, mas dessa vez ela não achou graça. Não achou nada, na verdade. Parecia despida de emoções, e aquilo era estranho. Sempre fora transparente, emotiva, dada à relacionamentos profundos e demonstrações públicas de afeto. Cortou o assunto.

 - Como é o nome do cachorro?

Sua voz saiu mais rouca e grave do que esperava. Parecia uma daquelas cantoras de blues, aquelas negras bonitas que via nos romances noir que o pai tanto gostava de assistir.
 - Baltazar. Ele vive aqui em casa, parece que gosta de dormir naquele cantinho.
Baltazar. Que nome engraçado, pensou ela. Transmitia segurança. E um quê de década de quarenta também, sabe-se lá o motivo. Nenhuma das duas quebrou o silêncio que se seguiu. Até que a garota resolveu perguntar.

 - Por que eu tô aqui, tia?

A senhora já não pareceu tão simpática. Arredia, sorriu amarelo e acendeu um cigarro, daqueles que fedem horrores porque não custam mais do que duas pratas o maço. Bebericou seu chá, à essa altura morno. Olhou para ela e não disse nada. E como a garota não era de insistir em conversa morta, levantou e foi mexer com o cachorro que respirava profundamente, soltando roncos ocasionais que a faziam sorrir. Afagou a cabeça dele, cutucou a barriga, fez-lhe festas nas costas cor de chocolate e nada. O cachorro simplesmente não se mexia. Não fosse a respiração lenta e compassada que fazia os fios soltos do carpete se mexerem, qualquer um teria dito que o cachorro estava morto. Mas ele estava vivo, só não parecia querer muita conversa. A mulher se levantou da mesa e se juntou à garota. Agachou-se e disse, quase que num sussurro:

 - É normal. No começo você não lembra de muita coisa, aí chegam as três da manhã e você vê tudo como num filme. E aí de repente você se acostuma e toma chá todas as tardes, mesmo que ele a cada dia perca um pouco do sabor, até aquilo que há na xícara não passar de um líquido âmbar com gosto de verniz. E o bolo de fubá não parece ter a mesma textura e a mesma cor daquele que você fez alguns dias atrás. E até mesmo os cigarros já não te acalmam mais, e nem o café te mantém acordada. E não há sonífero que te faça dormir porque o barulho lá fora é insuportável. E por fim você começa a se arrepender e aí se tiver sorte a sua consciência fica entorpecida demais pra você conseguir pensar em qualquer coisa que não um provável segundo suicídio.

Três badaladas do relógio. A depressão. O álcool. O pó branco alinhado em caprichosas carreiras por cima de um livro do Bukowski. Os remédios tarja preta, o whisky e aquele zumbido insuportável. As sirenes. Os gritos. As lágrimas. A luz branca do hospital. A voz desanimada do médico. E por fim... o silêncio.

A garota olhou assustada para a mulher, que compreensiva, lhe estendeu as mãos, agora pútridas com unhas que mais pareciam garras. O sorriso era um esgar de dentes afiados e amarelos, e os olhos eram duas órbitas negras. 

E enquanto isso, lá fora, uma figura alta, de cavanhaque, uma bengala com um pequeno tridente na ponta, um rabo e um modesto par de chifres assoviava, tranquilo, pelas ruas, enquanto entoava:

 - Baltazar? Cadê você, garotão?

A cabeça do labrador se dividiu em três, e com um rosnado e um borrão de dentes e escuridão, o cachorro desceu a escada, abanando o rabo contente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário